3.1.13

FCCN: Quem quer matar um campeão português?


Talvez não saiba o que é a FCCN. Vamos explicar, devagarinho, de modo a que até os ministros do actual governo compreendam. E depois vamos tentar perceber como está o actual governo a tentar matar este campeão português.

A FCCN é a Fundação para a Computação Científica Nacional e foi criada em 1986, com uma dotação financeira iniciai assegurada pelo INIC e pela Secretaria de Estado de Investigação Científica por verbas resultantes da adesão de Portugal ao CERN. Os outros fundadores (JNICT, CRUP e LNEC) disponibilizarem recursos humanos e materiais para a instalação e funcionamento desta nova organização.
A FCCN veio a assegurar em 1991 a ligação de Portugal à Internet numa altura em que os aspectos técnicos da Internet eram pouco conhecidos em Portugal fora da Universidade. Data dessa altura o início fundacional da gestão do domínio de topo .pt pela FCCN, no mesmo ano em que foi inventada no CERN a World Wide Web.
A FCCN também assegura desde 1995 o único Internet Exchange Point de propriedade portuguesa (o GigaPIX) a funcionar para tráfego com origem e destino em Portugal entre os vários ISPs (Internet Service Providers) de forma a evitar custos de tráfego internacional nas comunicações nacionais. A escolha da FCCN pelos ISPs nacionais deveu-se a ser considerada por estes uma entidade neutra em relação aos seus interesses.
A FCCN assegurou o desenvolvimento e o funcionamento da Rede Nacional de Investigação e Educação, que em 1997 foi também designada por RCTS — Rede Ciência Tecnologia e Sociedade, e concretizou nesse mesmo ano a ligação à Internet de todas as escolas do país do ensino básico e secundário com ensino do 5º ao 12º ano. Em 2001 a FCCN concluiu a ligação à Internet de todas as escolas do 1º ciclo do ensino básico, tornando Portugal um dos países pioneiros no mundo a assegurarem a ligação à Internet de todas as escolas de ensino básico e secundário. Também em 2001 a FCCN assegurou a ligação do sistema científico e de educação de Portugal, pela RCTS, à Rede Europeia de Investigação e Ciência GÉANT, criada em Novembro de 2000. Ao longo de 2005 a FCCN assegurou a ligação em banda larga de todas as escolas públicas do ensino básico e secundário, mais uma vez colocando Portugal no restrito grupo de países do mundo que dispunham de banda larga em todas as escolas públicas nessa altura. Desde 2003 são asseguradas ligações no protocolo IPv6 que está a substituir o protocolo iPv4 devido à exaustão iminente do número máximo de endereços IP que este protocolo pode suportar, tendo sido a primeira rede portuguesa a assegurar a compatibilidade com este protocolo.
Em 2004-2005, a FCCN instalou e ficou proprietária de uma ligação dorsal em cabo de fibra óptica ao longo de cerca de 400 Km de Lisboa a Braga. Em 2009 foi concluída a extensão dessa ligação dorsal de forma a chegar a Norte à fronteira com a Galiza e a Este à fronteira com a Estremadura Espanhola, totalizando mais de 1.000 Km de cabos de fibra óptica que garantem a ligação em anel redundante à rede europeia GÉANT através da Rede de Educação e Investigação de Espanha. Note-se que a RCTS assegura a cada instituição científica e a cada instituição do ensino superior e ao ensino superior privado um serviço que não está disponível comercialmente em condições gerais.

Além da infraestrutura básica de rede de muito alta velocidade antes referida, a FCCN foi instalando serviços de alto desempenho sobre esta rede, tirando partido de economias de escala resultantes da rentabilização dos recursos instalados. Destaquemos alguns:


  • Biblioteca do Conhecimento Online (b-on). Planeada em 1999 e começada a disponibilizar em 2004 com cerca de 3.500 publicações, através da qual permite o acesso ilimitado e permanente nas instituições de investigação e do ensino superior aos textos integrais de mais de 55.600 publicações científicas internacionais (20.000 publicações periódicas, 21.700 e-books, 13.800 títulos de proceedings e transactions) de 18 editoras internacionais. Com a constituição da b-on e a realização de assinaturas com as editoras internacionais à escala nacional conseguiram-se economias assinaláveis com uma redução de custos totais a nível nacional para valores entre metade e um terço do que seriam sem a b-on. A comunidade científica nacional utiliza intensivamente este recurso imprescindível para a actividade científica diária, tendo realizado 7,7 milhões de downloads de publicações da b-on em 2011.
  • Repositório Científico de Acesso Aberto de Portugal (RCAAP). Desenvolvido em 2008 em colaboração com a Universidade do Minho, integra 44 repositórios institucionais, inclusivamente de todas as universidades públicas e vários laboratórios do Estado, outras instituições científicas, institutos politécnicos e universidades privadas, e contém mais de 110.000 documentos. Desde 2010 a FCCN assegura a concretização de um protocolo de cooperação com o Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia, elevando o número de documentos disponibilizados a partir do motor de busca do RCAAP a perto de meio milhão. No último ano académico, 2011/12, o número de downloads de documentos do RCAAP foi 10 milhões, contribuindo significativamente para aumentar a visibilidade de resultados e instituições de investigação portuguesas através de pesquisas gerais na Internet e para aumentar a utilização e o impacto da investigação, dado que se verifica um grande aumento de citações em resultado da disponibilização em Acesso Aberto.
  • Zappiens.pt, o repositório de vídeos de alta definição de interesse científico, educativo e cultural lançado em 2008 e cujo conceito foi replicado pelo Brasil em 2010 na sequência de protocolo assinado com a FCCN.
  • Computação GRID, através de um cluster de âmbito nacional com um datacenter próprio que levou Portugal a ter uma posição significativa em âmbito europeu na European Grid Initiative.
  • e-U Campus Virtual (eduroarn), iniciativa que foi pioneira ao nível de um país em âmbito mundial, integrando todas as instituições públicas do ensino superior e as instituições privadas aderentes num campus virtual único, por um sistema de autenticação de utilizadores de âmbito nacional e acessível sem fios nos vários campus físicos, o qual começou a ser instalado no final de 2004 e atingiu em Novembro de 2010 mais de 5 milhões de sessões de acesso sem fios mensais.
  • Rede VoIP (Voice over Internet Protocol) para quase todas as instituições do ensino superior público (98%), desenvolvida em 2008-09 com redução a zero do custo de comunicações telefónicas dentro do sistema e significativas economias nos custos de comunicações telefónicas para redes públicas (fixas e móveis). Estima-se que a redução anual dos custos de comunicações de voz das instituições de investigação e do ensino superior seja de cerca de 3 milhões de euros.
  • Segurança informática, apoiada no CERT.PT, a primeira equipa de resposta a incidentes de segurança informática em Portugal a ser acreditada internacionalmente.
  • Arquivo da WEB Portuguesa, que recolhe com regularidade os conteúdos de domínios sob .pt , desde o início de 2008 e tinha no final de 2011 mais de 1.300 milhões de conteúdos arquivados.


Creio que o que fica dito acima é suficientemente clarificador da expressão que utilizamos para qualificar a FCCN: “campeão português”. Alguns países têm instituições deste calibre. Os países que conseguiram isso, orgulham-se dessas instituições e preservam-nas. Com unhas e dentes. Já em Portugal…

No Conselho de Ministros de 11 de Dezembro foi aprovada uma alteração à Lei Orgânica do Ministério da Educação e Ciência que, entre outras coisas, prevê a extinção da FCCN e a inserção das suas atribuições na FCT (Fundação para a Ciência e a Tecnologia). Esta decisão foi tomada sem consulta ou aviso prévios de universidades, politécnicos e comunidade científica, dando conhecimento à FCT pouco antes da reunião do Conselho de Ministros e já sem haver oportunidade da FCT poder influenciar a decisão. Ora, dadas as características da missão que tem vindo a desempenhar brilhantemente a FCCN, esta integração-extinção é uma condenação à morte desse campeão português.

É que a concorrência por recursos humanos para as actividades da FCCN tem de ser feita no mercado privado extremamente competitivo dos especialistas de topo de redes informáticas e de sistemas de informação computacionais; e a missão desempenhada pela FCCN requer uma organização autónoma, com meios para uma gestão flexível e eficiente num sector de grande competitividade técnica. Assegurar funções de operação de redes electrónicas de comunicação de Nova Geração e de fornecimento de serviços avançados sobre essas redes exige flexibilidade de gestão e capacidade de recrutamento e renovação de recursos humanos competitivamente com os operadores do sector. Ora, isto só é possível se a FCCN se mantiver como uma entidade autónoma com a presente missão e atribuições e com regras de gestão, recrutamento e remuneração de recursos humanos só possíveis como instituição privada sem fins lucrativos de utilidade pública. Os efeitos desta machadada governamental neste campeão português não se farão esperar: vários técnicos da FCCN já anunciaram a decisão de a deixarem para ingressarem no sector privado; de futuro, será difícil, ou mesmo impossível, recrutar os quadros com as qualificações necessárias para as funções em causa no enquadramento de um Instituto Público como a FCT.

Do ponto de vista do quadro institucional, e das respectivas consequências para o bom governo de um país desenvolvido, esta opção governamental é um puro disparate. É que, tendo a FCCN em Portugal as funções de NREN (National Research and Education Network), esta integração-extinção terá pesados custos. A generalidade dos países da União Europeia, mesmo os mais pequenos, têm uma entidade específica para assegurar estas funções para as instituições científicas e as universidades, que na quase totalidade dos casos é uma entidade privada sem fins lucrativos de reconhecida utilidade pública e com financiamento predominantemente público, como é o caso da FCCN. Seria absurdo Portugal aparecer agora com a novidade de deixar de ter uma tal entidade específica. Acresce que, como NREN, a FCCN tem recebido financiamento da Comissão Europeia no âmbito dos sucessivos projectos GÉANT, que presentemente é próximo de 1 milhão de euros por ano, o que poderá ser posto em causa se a FCCN passar a ser parte da FCT, dado que esta é a principal organização financiadora de I&D nacional.

É preciso impedir este assassínio de um campeão português. A extinção da FCCN como entidade privada sem fins lucrativos de utilidade pública, e a sua integração na FCT, destruirá muito rapidamente a sua capacidade para cumprir a alta missão que tem vindo a desempenhar brilhantemente, essencial para o sistema científico e educativo português.

Parece que a ideia de extinguir a FCCN se deve à politiquice do Governo que não quer deixar extinguir a chama da mal amanhada operação de pseudo-avaliação das fundações. Essa avaliação deixou incólumes alguns monstros dos amigalhaços (como a Fundação Social Democrata da Madeira), tentou enlamear fundações com relevantes serviços prestados ao país (como a Gulbenkian) e serve, entretanto, para matar campeões. É o caso da FCCN. Sabe-se que a FCCN recebeu em 20 de Setembro passado uma comunicação, em carta muito sucinta assinada pelo Secretário de Estado da Administração Pública, com os resultados da avaliação realizada, informando que o Governo tinha decidido “não reduzir ou cessar os apoios financeiros públicos e/ou não cancelar o estatuto de utilidade pública” a essa Fundação. Agora, em espírito natalício (sim, os diabos também festejam o Natal, mas à sua maneira), vêm tentar aniquilar um campeão nacional.

Será que a FCCN está destinada a ir parar a mãos angolanas, para compor algum negócio que não esteja suficientemente arredondado?

(Este texto usa extensivamente palavras e informações de autores mais qualificados do que o seu subscritor aqui no blogue. Não exponho aqui essas fontes e autores por respeito à privacidade dos seus actos, mas não posso deixar de mencionar que, sem esse “alimento”, este texto não teria sido possível.)