10.11.12

lá fora, o dia do cão negro espreita.




Não sou contra o protesto da cidadania. Também por estes dias tudo em mim protesta contra a (des)ordem do mundo, cada vez menos acolhedor. Contudo, creio que, se todas as forças políticas do país se tornarem apenas forças de protesto, estaremos acabados como comunidade política viável. Quer dizer: tornar-se-á muito difícil vivermos juntos e vivermos bem neste jardim à beira do mar plantado.

Nestes tempos infaustos, o grito tornou-se a única palavra ouvida. Grita-se contra os ministros, contra os deputados, contra o presidente, contra a Merkel, contra o protectorado. Tornou-se popular dizer que se cerca o parlamento, que se invade o parlamento, que se parte a tralha toda. Publicam-se listas de nomes e de fotografias de deputados que votaram o orçamento do Estado, porque o orçamento, dizem, é assassino, e será cúmplice todo aquele que o vote. Querem julgá-los no tribunal, como criminosos, e invocam o exemplo da Islândia, ignorando que na Islândia, em substância, nenhum político foi condenado pela crise, apesar dos julgamentos. E parecem ignorar que quem realmente ganha com a crise não são os políticos. Fazem-se esperas aos ministros, perseguem-se deputados da maioria na rua aos gritos de ladrão, ladrão, fazem-se manifestações contra Barroso quando ele vai - como pessoa privada - a um teatro e há quem bata palmas e augure que daqui a pouco "nenhum deles sairá à rua". Como arma de luta política, abandona-se o terreno do debate político para criminalizar a divergência. Poucos dos que assim procedem têm a real noção de como começaram os fascismos. Quero dizer: alguns saberão e andam nisto por saberem que isto é o alimento das ditaduras, mas a maioria anda nisto sem sequer ter consciência disso. É que a "justiça" às mãos da rua, a intimidação como método, a criminalização das divergências políticas, podem não ficar sempre pelos alvos de hoje - e os alvos de amanhã podem vir a ser determinados pela habilidade dos incitadores e não pela pureza virginal dos protestantes. E os que realmente enchem os bolsos com a crise nunca são cercados, nem invadidos, muito menos travados, sequer inibidos.

Todos os que assim gritam assumem-se como sumamente patriotas, competentes, esforçados e honestos. Partem do princípio de que qualquer político é um calaceiro, um incompetente, um vende-pátrias. Só não se percebe em que se fundamentam para partirem desse princípio, quando é público e sabido que, se há deputados que nunca fizeram nada na vida a não ser deputar, muitos deputados e outros políticos já tinham uma vida profissional e cívica antes e para além da política e alguns chegaram mesmo ao topo das suas carreiras profissionais antes de serem políticos - e esses são, pelo menos nisso, escrutináveis, o que os distingue de muitos que os criticam no remanso do anonimato, da multidão, da caixa de comentários. A crítica generalizada aos "políticos" é um substituto aguado da verdadeira discussão política, ocupa o lugar mas não o papel do confronto de programas, substitui o debate pelo anátema. E o anátema nunca discute razões, porque toma a razão como sua prisioneira e serva, para a manietar. A crítica indiferenciada aos políticos é, no plano individual, simples arrogância de quem se julga acima dos outros sem ter para isso créditos firmados. E é, no plano do país, o desprezo pela democracia concreta: jurar a pés juntos que se é democrata e, ao mesmo tempo, tudo fazer para desmantelar a máquina da democracia - a democracia que existe, não a ideal numa ilha perfeita em lugar nenhum -, é colaboracionismo com os que gostariam de uma "democracia" musculada ou tutelada - na qual, aliás, estes protestos não mais seriam possíveis. Os políticos não são todos iguais, podem ser avaliados pelo que fizeram e fazem, mas quem critica a eito não tem tempo para esse escrutínio, porque faz da sua voz pública um mero exercício de azia. E a azia nunca foi boa conselheira.

Eu também detesto o rumo que este país está a levar, detesto a estupidez desta Europa corrente, detesto as injustiças deste mundo. Mas já pensava isso antes de sermos todos vítimas do processo. É por isso que, francamente, não me sinto obrigado a ter muito respeito por quem só se lembrou dos males do mundo quando perdeu uma fatia do ordenado, quando começou a pagar mais impostos. Por quem só se apercebeu quando foi tocado pessoalmente, se calhar tendo antes andado a bramir contra o rendimento mínimo, contra "os subsídios" (se calhar, até contra o salário mínimo). Por quem, se calhar, reclamou a candura da "livre iniciativa" sem freio. Não me sinto obrigado a ter muito respeito por quem, depois do que está à vista, ainda está contra os sindicatos (não me refiro à discordância das orientações concretas, discordância que é legítima; refiro-me ao ataque sistemático à sua acção em geral). Não me sinto obrigado a ter muito respeito por quem diz querer um sistema político melhor e no entanto também diz que nunca vota: como se os sistemas políticos caíssem do céu como as águas da chuva. Por isto, o grito, em si mesmo, não me mobiliza - muito menos me convence necessariamente. Nem sequer me obriga sempre ao simples respeito.

Posso perceber que se grite: eu também grito e protesto. Julgo é que se pode perguntar aos manifestantes: e para além disso, não há nada a fazer? Todos sabem como resolver a crise em três horas e um quarto. Duvido é que, na sua maioria, estejam dispostos a fazer mais qualquer coisa de concreto na vida política. Uma sugestão: os que se queixam tanto do monopólio dos partidos, que se reclamam excluídos da participação política pelas leis eleitorais, têm proximamente uma boa oportunidade: apresentem listas de cidadãos às próximas eleições autárquicas. É um ponto para começar a trabalhar perto das pessoas, onde as pessoas conhecem melhor os políticos e estão dispostas a avaliá-los pelo seu trabalho concreto, onde se pode mostrar a genica e o saber que sugerimos ao mundo quando protestamos e sugerimos servir melhor a polis.

O sopro anti-políticos, que por estes dias sopra forte, mesmo violentamente, é um sopro anti-democrático, assanhado por ideias simplistas acerca de um mundo complicado. Os deuses do Olimpo nos salvem de algum dia sermos governados por esta fúria. Precisamos de melhor política, porque o mundo está difícil. Mas o mundo nunca deixou de estar difícil para a quinta parte dos portugueses que vivem abaixo do limiar da pobreza, mas muitos nunca se preocuparam com isso e olharam para eles com desdém. E o mundo nunca deixou de estar difícil para milhões de pessoas por esse mundo fora que sobrevivem com quase nada durante todo o seu calvário do nascer até à morte. Precisamos de melhor política, porque o mundo está difícil, mas o "grito" de radicalismo, ideias feitas, violência verbal, justicialismo, por vezes com muita mentira e ignorância à mistura, esse "grito" que campeia neste país por estes dias, é política da pior, é o pão dos ditadores, é a negação da palavra argumentada e reflexiva de que precisamos hoje.

Lá fora, o dia do cão negro espreita. Mas não abriremos um caminho entre os perigos apenas gritando. Porque o breu não se assusta com gritos.



(A foto lá em cima foi encontrada no facebook de Inês Meneses, mas não consegui determinar a fonte.)