4.10.12

as unidades das esquerdas.


Estas notas soltas são, principalmente, sobre o PS, o PCP e o BE. Aos que trabalham afincadamente em definir uma linha que separa o PS da esquerda: podem parar por aqui, não tenho nada a dizer-vos. Aos que apelam à história (do "socialismo real" e dos "extremismos") para recusar qualquer diálogo com o PCP e o Bloco: podem parar por aqui, isto não vos interessa. Podem permanecer na sala aqueles que julgam que poderia ter alguma utilidade que aqueles três partidos tivessem um tipo de diálogo que, a nível nacional, nunca tiveram.

Julgo - desde sempre - que as várias formações políticas que se reclamam de alguma esquerda deveriam ser capazes de manter um diálogo estruturado. Esse diálogo deveria cruzar vários planos: o plano dos princípios (o que queremos mudar no mundo), o plano dos programas (que coisas concretas podemos fazer politicamente para tornar o mundo mais habitável, especialmente no caso daqueles que mais injustiças sofrem na actual forma do mundo), o plano do combate político (em que objectivos concretos podemos ir convergindo e como falamos disso). O PS poderia ganhar com isso mais possibilidades de formar maiorias políticas capazes de aplicar algumas das suas ideias, o PCP e o BE poderiam ganhar mais poder de moldar políticas governativas concretas.

O PS queixa-se da excessiva facilidade com que PCP e BE o erigem em inimigo principal. Julgo que o PS tem nisso razão: a esquerda da esquerda usa demasiadas vezes uma retórica política que esconde "o outro lado da questão" para apresentar versões simplistas dos problemas e representar defeituosamente a posição do PS. Muito do debate actual sobre a crise, por exemplo, é deformado se não se perceber que o PS é muito mais cioso do compromisso nacional com a União Europeia (que julga vital para o país a longo prazo), muito mais empenhado nas nossas responsabilidades comunitárias, por contraste com as correntes anti-europeístas que continuam a ter importância (intelectual e social) na esquerda da esquerda. E, na verdade, soa estranho que a esquerda da esquerda tenha, às segundas, quartas e sextas, muitas ideias acerca do que a UE devia fazer diferente para resolver a crise, mas tenha, às terças, quintas e sábados, um discurso de ruptura com a UE, pintando com cores atraentes soluções (como a saída do Euro) cujas consequências políticas nos poderiam tornar ainda mais marginais no continente. A questão europeia é, aliás, um dos obstáculos centrais a um diálogo mais profícuo à esquerda.

O PCP e o BE queixam-se das "políticas de direita" do PS. Num certo sentido têm razão: o PS, como outros partidos socialistas, social-democratas e trabalhistas, na Europa e nem só, procuraram, nas últimas décadas, reciclar soluções "capitalistas"; procuraram usar ferramentas "de mercado" para enfrentar problemas que não tinham sido bem resolvidos com políticas que só faziam confiança no Estado. Havia boas razões para isso: muitas políticas estatistas mostraram-se um fracasso. Era preciso - e continua a ser preciso - procurar alternativas. A esquerda da esquerda, permanecendo afastada do poder, parece pouco alertada para essa necessidade - e mistura críticas operacionais com críticas ideológicas. (Por exemplo, as Parcerias Público Privadas são atacadas por terem sido mal negociadas, até eventualmente com dolo, mas essa questão é frequentemente associada à tese de que nada daquilo poderia alguma vez estar nas mãos dos privados. Ora, temos aí questões completamente diferentes.) Entretanto, a esquerda da esquerda abusa, com frequência, da confusão entre as políticas do PS e as da direita, confundindo uma função de "representação social" com aspectos programáticos. Por exemplo, para chamar aqui uma grande ferida da governação Sócrates, a "luta dos professores" contra certas reformas na Educação, que eram fundamentalmente motivadas por razões profissionais (justas ou não, não discuto agora isso) foi representada politicamente pela esquerda da esquerda como uma luta ideológica, como se fosse uma luta contra uma concepção "de direita" da Educação - o que, a meu ver, não cola nada com a verdadeira defesa da escola pública que era o programa da Ministra Lurdes Rodrigues. A confusão desses planos, apresentando como fundamentalmente ideológica uma discordância que era basicamente profissional (e deveria ser do campo de luta sindical), serve a luta política imediata da esquerda da esquerda, mas prejudica qualquer diálogo mais vasto com o PS. É um preço que o PCP e o BE têm mostrado grande facilidade em pagar.

Este é o quadro em que tem evoluido o afunilamento da esquerda. Por afunilamento quero dizer: intolerância crescente, incapacidade para considerar e discutir produtivamente alternativas variadas, redução de muito discurso político ao chavão.

A actual contestação à desastrosa política do governo Passos/Gaspar exemplifica o afunilamento da esquerda. Enquanto o PCP e o BE tendem para soluções politicas de ruptura com os credores, o PS tende para soluções enquadradas pela UE e que não impliquem nenhuma descontinuidade séria no nosso enquadramento internacional. A linha defendida pelo PS pode vir a falhar: assim será se a UE persistir nos principais erros que tem cometido na gestão da crise. Mas reconhecer isso é coisa bem diferente de, como fazem o PCP e o BE, vender a linha da ruptura ("não pagamos", "romper com a Troika") como se ela fosse indolor e de sucesso garantido. Neste contexto, o PS procura representar uma fatia dos portugueses, que querem outra política mas dentro de uma manobra conjunta europeia e sem ruptura - enquanto a esquerda da esquerda tudo faz para representar a posição do PS como "uma traição" e como cumplicidade com o governo e com os erros da Europa. A velha tentação salazarenta do "quem não está por nós, está contra nós" tem muito curso hoje em dia à esquerda - e esse é apenas mais um episódio do afunilamento da esquerda, que também cava no fosso da anti-política e do desprezo pela democracia representativa.

Muitos no PS julgam que esta conversa das esquerdas não interessa nada. No osso, o argumento é este: o PCP e o BE defendem programas perfeitamente desligados da realidade e um partido que quer ser governo não pode ligar-se a essas forças. Discordo. Desde logo, porque a realidade já não é o que era: estamos hoje, outra vez, a descobrir que o manhoso capitalismo fez de conta que queria civilizar-se, atraindo os socialistas em todo o mundo para "aproximações", e, depois de ter comido a fatia que lhe convinha, voltou à sua força bruta que tão bem compreende. Isso implica reequacionar instrumentos que estavam um tanto esquecidos: que nacionalizações para este tempo, por exemplo, é uma pergunta cada vez mais actual. Depois, porque não podemos pensar no PCP e no BE apenas como forças ideológicas: temos de os pensar como forças políticas, que representam pessoas, ideias, projectos, movimento, imaginação, desejos, necessidades - que podem ser mobilizadas para fazer coisas novas. E mais: o PS precisa renovar-se com gente sem hábitos de poder. É importante ter ex-ministros e ex-directores-gerais e ex-administradores, que sabem como as coisas pequenas de todos os dias se fazem. Mas também é importante ter gente que não foi ainda amaciada pelos corredores do poder, pelos almoços de negócios, pelas conveniências. A esquerda da esquerda tem, ainda, alguma coisa dessa força genuína (embora não sejam todos virgens, como nos querem fazer crer).

Esta reflexão (desordenada, ao correr da pena) não foi motivada pelas grandes iniciativas que por estes dias têm sido entendidas como oportunidades de diálogo à esquerda. Foi motivada por algo mais pequeno, mas que, a meu ver, faz a matéria das pequenas-grandes dificuldades/oportunidades. O PCP e o BE convergiram na censura ao governo (sem o meu entusiasmo, porque vi as moções serem, mais uma vez, embrulho para picadas ao PS). Convergiram a medo, cada um na sua bicicleta, mas convergiram. E fizeram saber que convergiram. Alguns dirão que isso interessa pouco. Adiante. O que quero dizer é que nunca haverá qualquer diálogo real entre a esquerda da esquerda e o PS enquanto o PCP e o BE não tiverem um razoavelmente sólido entendimento entre si. O PCP nunca dará ao BE o bónus de se aproximar sozinho do PS; o BE nunca dará ao PCP o bónus de se aproximar sozinho do PS. Por essa razão, um clima político menos abertamente competitivo entre PCP e BE é necessário a um diálogo mais descomplexado entre PS, PCP e BE. Sou favorável, em geral, a que os partidos políticos sejam mais capazes de negociar entre si, sem que isso afaste a necessária diferença e competição. Acho que "à esquerda" isso é ainda mais necessário. Sonho acordado? Provavelmente. Mas, ainda assim, gosto mais de sonhar acordado do que andar por aí a dormir na forma.