24.7.12

libelinhas.


Já ninguém ouve álbuns da primeira à última canção. Já ninguém lê livros da primeira à última página. Mesmo nas escolas pululam as fotocópias de capítulos, como quem vai ao retalho comprar um quilo de feijões. Filmes, aparentemente sim: para lá dos visionamentos na televisão, compatíveis com toda a espécie de distracções e interrupções, ainda se vêem filmes completos nas salas de cinema, porque as pessoas se sentam na sala escura e ficam lá até ao fim (quase, porque saem antes da ficha) – mas, na verdade, lêem e mandam mensagens curtas durante o filme (os mais boçais falam mesmo ao telemóvel), tratando a fita como uma colecção de vídeos do YouTube.
Quando digo “já ninguém…” quero dizer “há uma prática generalizada e que se tornou padrão de comportamento e de avaliação”. Quero dizer: entranhou-se (mesmo que depois de se ter estranhado).
Podemos tecer muitas considerações sobre vários aspectos dessa questão. Uma linha de considerações seria pedagógica: quando ensinamos, o que ensinamos implicitamente por dizer às pessoas que podem colher um raminho aqui e um raminho acolá, sem grande atenção ao conjunto, como se estivesse ao nosso dispor fazermos um grande caldo de “pacotinhos de informação”, mesmo que esses pacotinhos desgarrados tenham perdido todo o sabor daquilo que os autores quiserem originalmente dizer? Esta forma de fazer as coisas está, penso eu, intimamente ligada à desafeição que cursos de toda a espécie deixam naqueles que os frequentam em relação às pérolas que os deviam ter marcado a fogo. Uma secção ou um capítulo de uma obra não é necessariamente uma obra propriamente dita, mesmo que permita fazer um exame e dizer que já se leu fulano ou beltrano. E alimenta-se a síndrome da libelinha.
Mais em geral, voando mais afastado das coisas práticas, esse estilo libelinha peca por não nos ensinar a consideração. Consideração de uma obra no que ela tem a dizer como intervenção no mundo, não apenas um pedaço de informação sobre isto ou aquilo que aparece a páginas tantas. Consideração de um autor que escreve um livro, realiza um filme, compõe uma obra musical, não para ser “fonte de informação”, mas para dizer qualquer coisa sobre a sua e nossa humanidade. Consideração de uma obra, de uma visão, de um grito que seja. Comer isso cortado em fatias é uma aberração, uma falta de consideração, uma forma obtusa de nos desgarrarmos dos outros e do seu significado como habitantes deste mundo.
A generalizada desatenção ao que tem significado de algum lado virá.