11.6.12

Histórias do Facebook.



Aqui há tempo tive no Facebook um "bate-papo" com Raquel Freire. As conversas no FB têm um estatuto estranho: por serem mais ou menos imediatistas e, assim, facilitarem uma certa espontaneidade; por "falarmos" com uma certa informalidade, mas em público. Na altura registei a dita conversa e ficou por aí, a remoer no meu persistente incómodo com usos (a meu ver) extraviados de comparações com o tempo antes do 25 de Abril de 1974. Depois de outra conversa que tive hoje, também no FB, onde, a meu ver, volta ao de cima, com outra pessoa completamente diferente, o "síndroma da falta de perspectiva histórica", decidi publicar o "velho material", onde duas pessoas, sem grande recuo, expõem pontos de vista diferentes, que na sua articulação - e nos seus erros mútuos - podem ajudar outros a pensar. Não para "alinhar" ou "desalinhar", mas pensar.

***


Raquel Freire coloca esta fotografia acima com este comentário: «das vítimas da tolerância zero: no dia 25 de abril de 1974, a pide abriu fogo sobre as pessoas| matou Fernando C. Gesteira, José J. Barneto, Fernando Barreiros dos Reis, José Guilherme R. Arruda».

Eu reagi: «Se a referência à "tolerância zero" é para fazer um paralelo com certos elementos da actualidade, devo dizer que discordo desses paralelos abusivos. Comparar a acção assassina da PIDE com o que existe hoje, por muita razão que haja para discordar de muitas coisas que se fazem hoje, é um desrespeito por quem morreu às mãos de uma ditadura.»

Raquel Freire: «e eu fui censurada por uma democracia? não, fui censurada por este governo. numa democracia há censura política?»

Eu: «Raquel, não foste a primeira a ser censurada, nem serás a última. Tiveste a minha solidariedade, e tens, e terás. Mas isso não te transforma no centro da revolução mundial, nem te faz morta como os que morreram às mãos da PIDE, nem te justifica intelectualmente a misturares tudo. De qualquer modo, se não distingues as situações, acho que estás a misturar um ponto de vista pessoal com um ponto de vista político. Não me sinto autorizado a comentar perspectivas pessoais, o meu comentário era político. E, nessa medida, reitero-o.»

Raquel Freire: «o meu comentário foi político. eu não sou o centro de nada, fui censurada (entre outras coisas), como (infelizmente) mais pessoas. a censura foi um acto político. ou achas que o 1º ministro tem algo de pessoal contra mim? estamos a falar de política, do fim da democracia e do pacto social que foi estabelecido com o 25 de abril de 1974. estamos a entrar numa nova ditadura que se impõe duma forma insidiosa, através das mesmas formas de repressão: censura, repressão policial, controle da informação, medo e controlo social.»

Eu: «Raquel, o teu comentário foi uma comparação entre a fotografia (mortos pela PIDE) e as actuais vítimas de práticas erradas e perigosas. Mas, por muito que te censurem da forma que te censuraram, as tuas actuais possibilidades de expressão são infinitamente maiores do que eram as do antigamente. E eu acho uma irresponsabilidade - e um grave erro político - comparar o que havia neste país antes do 25 de Abril e o que há agora. Foste tu que chamaste a tua pessoa à conversa com a resposta que me deste ali acima: respondeste-me com o teu caso pessoal. O teu caso pessoal é importante, mas foste tu que o deste como resposta política. Acho que a comparação expressa ali acima denota uma distorção política grave e uma falta de sentido da história.»

Raquel Freire: «eu invoquei um caso de censura política porque é um forte sinal de um sistema que se diz democrático mas que manifesta formas de repressão que caracterizam os regimes totalitários. invoquei o meu caso, porque eu vivi-o, é um relato de repressão da liberdade na 1ª pessoa. não falo de um "ouvi dizer", não, aconteceu-me e teve pormenores pidescos, que serão revelados em breve. e sim, faço comparações, porque ter memória e ter pensamento crítico é isso: analisar o que se está a passar e conseguir ver para além das aparências. eu tenho pessoas da minha família que foram assassinadas pela pide. nada do que se possa passar hoje os vai trazer de volta. mas cabe-me a mim lutar para que hoje isso não se repita. a humanidade evolui em espiral, nada se repete, a repressão agora não tem a mesma cara, mas existe, e não a ver é um erro político gigantesco.»

Eu: «Raquel, quem não percebe a diferença que vai entre o pré-25 de Abril e os dias de hoje, não percebe nada. Não é uma questão de escala: há coisas hoje que são mais graves do que eram no passado. É, sim, uma questão de "qualidade" das coisas: há hoje perigos de uma "qualidade" mais difícil de apanhar do que quando as coisas eram mais contrastadas. De todos os modos, devemos evitar pensar que nós, aqui e agora, somos sempre os mais sofredores. Não te critiquei por alertares para isto ou aquilo; critiquei-te por comparares "isto" com a foto daqueles assassinados a 25 de Abril de 74 pela PIDE. E mantenho a crítica. E julgo que devemos, além das nossas penas, manter uma perspectiva histórica sobre as coisas, o que evitaria acharmos que somos nós as grandes vítimas da história. Porque fazer comparações como aquela que fizeste lá em cima, com o teu comentário à foto, é perder a memória. E perder a memória histórica é muito grave.»

Raquel Freire: «temos visões políticas diferentes. a mim custa-me que Porfírio Silva não perceba o que se está a passar hoje, connosco. custa muito termos a lucidez de constatar que 38 anos depois do 25 de abril, as bases em que fundámos a democracia foram e estão a ser destruídas, uma a uma. é mais fácil dizer: antes é que era mau. desresponsabiliza-nos. a pide também não começou por se chamar pide, nem por matar pessoas. foi tudo devagar. as pessoas na altura diziam o mesmo que o Porfírio.»

Eu: «Raquel, francamente acho que precisa estudar história. Mesmo essa conversa de que a PIDE não começou assim é bastante longe do que realmente se passou. Tenho tendência para sentir urticária quando os intelectuais, com ou sem aspas, fazem muitas piruetas para se colocarem no centro do mundo. Esta nossa conversa começou por causa da Raquel se colocar como vítima em paralelo com os populares que foram assassinados pela PIDE no 25 de Abril. Achei isso um disparate, e um abuso, e continuo a achar. Quanto à pretensa maior lucidez sua do que a dos outros, é como a água benta: cada um toma a que quer.»

Acho que este diálogo merece reflexão.