23.4.12

Dia Mundial do Livro.


Já que hoje é Dia do Livro (por decisão da UNESCO, assim é desde 1996), ofereço-vos uma página do meu último livro (último apenas em data, espero).
Aviso que esta não é a página mais divertida: a página mais divertida será encontrada por quem compre um exemplar e o leia na íntegra...


27. É difícil de engolir esta ideia de haver uma diferença entre a coisa (o código da estrada, o poema Os Lusíadas) e o suporte material dessa coisa? Certamente não nos confrontamos diariamente com exemplos dessa distinção. Mas ela, a distinção, existe. Nunca ouviram falar do “xadrez às cegas”? Usualmente associamos a cena de um jogo de xadrez a decorrer com a presença de um certo número de dispositivos materiais. No mínimo, um tabuleiro, peças; para encontros de torneio costuma haver relógios para controlar o tempo usado por cada jogador. Ora, no xadrez às cegas os jogadores não usam nenhum desses dispositivos materiais. Não há sequer tabuleiro, nem peças. Cada jogador limita-se a declarar verbalmente, na sua vez, qual a sua jogada. Os jogadores mantêm apenas na mente a situação actual do jogo, que peças existem, onde se encontram, certos elementos históricos da partida (por exemplo, para saber se um jogador pode ainda fazer ou não um dos movimentos designados por “roque”, pode ser preciso conhecer certos aspectos da história da partida). Por vezes, para acentuar dramaticamente o carácter puramente intelectual desta actividade, o xadrez às cegas é jogado com os jogadores de olhos vendados, havendo testemunhas que realizam num tabuleiro de xadrez convencional os movimentos sucessivamente anunciados pelos contendores, proporcionando assim uma forma de controlo material do processo. O jogo, um processo que começa num certo estado inicial bem determinado, que prossegue de acordo com certas regras que diferenciam exactamente se uma jogada é ou não legal, que termina com um certo resultado de acordo com regras que especificam quando se atinge um estado final e qual o seu significado (vitória, derrota, empate) – tudo isso existe independentemente dos suportes materiais usualmente empregues para facilitar a vida aos jogadores e aos espectadores. O jogo pode existir, exactamente com as regras que o caracterizam, apenas na mente dos jogadores e de quantos compreendam e sejam capazes de acompanhar o que eles estão a fazer. Eu, pessoalmente, apesar de ser capaz de jogar xadrez (pessimamente, diga-se de passagem), não seria capaz de seguir de forma puramente mental mais do que duas ou três jogadas de uma partida “às cegas” – mas isso não faria com que o jogo não existisse. Apenas sublinharia a minha incapacidade para seguir esse jogo naquelas condições. O jogo existe independentemente do suporte material usual: quem perdeu no xadrez às cegas, quem ganhou no xadrez às cegas, perdeu ou ganhou sem tabuleiro e sem peças de qualquer material em que pudessem estar feitos. O resultado, os lances, os erros e as soluções originais relativamente à história do xadrez, tudo isso existe nesta versão imaterial do xadrez, podendo depois ser registado, estudado, analisado, reproduzido em bases de dados de partidas, representado num programa de computador que reproduz partidas. O jogo existe, aquela partida concreta existe, em todo o esplendor da sua objectividade, mesmo antes de lhe ser dado qualquer suporte material, quando estava apenas na mente daqueles jogadores de olhos vendados e de quantos tomassem conhecimento da sequência de jogadas. Experimentem assistir a uma partida destas: é um espectáculo para o espírito se pensarmos bem no que se está a passar. Pois, também assim o poema Os Lusíadas e o código da estrada: existem independentemente dos seus suportes materiais.

Está aí a chegar a Feira do Livro de Lisboa...