24.3.12

também faço hoje um discurso de uma certa raiva.



Vemos acima um dos destaques da primeira página do Expresso de hoje. O artigo diz coisas como as seguintes:

«E até Santana Lopes (...) recebeu [a Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo]... das mãos de Cavaco Silva, o homem que o associou à "má moeda". Cavaco condecorou-o a 19 de Janeiro de 2010, cinco anos depois de Santana ter deixado o cargo, cumprindo o que disse ser "o dever e a tradição de condecorar aqueles que desempenharam as altas e complexas funções de primeiro-ministro", e no momento em que aquele já não exercia "funções políticas de destaque".»
«A democracia portuguesa sempre foi farta em divergências entre Presidentes e primeiros-ministros, mas nunca isso se tornou impedimento para a sua condecoração. Eanes agraciou Balsemão e Soares, com quem nunca se deu bem e este, quando foi Presidente da República, fez questão de condecorar o próprio Cavaco. Com a mesma Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo, aliás, em plena pré-campanha eleitoral em que este defrontava Jorge Sampaio.»

No actual momento, a República Portuguesa tem à frente uma figura menor, uma pessoa cheia de ódio, que ainda não percebe como é possível os seus antigos amigos se terem metido em bancos e outras cavalgadas das grandes, enquanto ele teve de limitar-se a umas operações menores com acções compradas e vendidas fora do mercado a preços convenientes, e a mais umas coisas pequenas, para acabar com uma conta bancária que não alcança as alturas das suas pretensões, com umas míseras reformas de uns milhares de euros, mais uns milhares de euros de despesas de representação para o inquilino de Belém, mais uma reforma da esposa de que ele se queixa em público com umas contas que não fazem a fama de um professor de finanças.
Essa pessoa cheia de ódio que ocupa o lugar de primeiro magistrado da nação confunde a narrativa do Estado com as historietas privadas, os rancores pessoais, o seu desgosto infindável por ter sido ele próprio a lembrar ao povo que ele não é o gigante que durante anos a fio nos tentou convencer que era. O Silva de Belém, não sendo pós-moderno, até acredita na necessidade de que haja uma narrativa das instituições, mas não consegue manter-se nela, resvala sempre para a mesquinhez que não o larga. O actual inquilino de Belém tem a maturidade política de um girassol e não se cansa de nos lembrar isso, convencido de que as suas vitórias eleitorais são uma bala de prata que lhe permite disparar à vontade contra toda a gente, sem ricochete nem consequências. A sua moralidade é a moralidade de dar sempre troco, não importa em que moeda, porque quem não tem cão caça com gato.
O governo ainda faz de conta que se concentra na crise, mas para Cavaco a crise é apenas a sua própria imagem no espelho da história, ele que se atreveu a tentar adiar a cerimónia de adesão de Portugal à CEE para ele poder ficar na fotografia, em vez de Soares, mas depois gastou os fundos comunitários numa grande estátua de nuvens à sua grandeza como governante, dando milho ao que depois chamou monstro como quem alimenta pombos.
O Silva de Belém é um regedor numa aldeia demasiado grande para o seu entendimento, um tipo que aprendeu na Madeira de Jardim que Os Lusíadas não têm nove cantos, um político que dedica os dois discursos do dia da sua vitória presidencial à exposição da raiva contra os seus adversários ou simplesmente críticos. O Silva de Belém parece ter sido contratado pelo pretendente ao trono para manchar a República e convencer o povo de que a Monarquia não pode, comparativamente com isto, ser assim tão má.
Nunca fui, olhando para o lado dos socialistas, daqueles batalhões naturalmente inclinados a gostarem de Sócrates. Converti-me, no entanto, num batalhador contra a sistemática política do ódio que há anos é conduzida contra ele. Em parte, porque a assim-chamada "esquerda do PS" nunca conseguiu fazer propostas políticas consequentes que pudessem realmente ser alternativas ao que Sócrates e os seus ministros iam fazendo. Em parte, porque a outra esquerda, BE e PCP à cabeça, cedo começaram a colocar ovos no mesmo ninho do PSD e do CDS, para tirar de lá Sócrates, conseguindo assim o que está à vista. Mas, além de tudo isso, principalmente, porque me é insuportável esta maneira de fazer política, esta pretensão profundamente desonesta de julgar a acção política do ponto de vista da omnisciência, em vez do ponto de vista da contingência, do peso da circunstância e da incompletude que não nos deixa ver Seca e Meca ao mesmo tempo. Não tem precedentes, desde o 25 de Abril, esta convergência de interesses políticos, empresariais e corporativos de várias espécies na tentativa de destruição de uma pessoa. Que esse clima mal-são tenha no topo do Estado um símbolo, é doentio.
A República Portuguesa tem à sua frente uma figura menor. Lamentavelmente, colocada entre a luz e a parede, desde que numa posição privilegiada, mesmo uma figura pequena consegue fazer vasta sombra. Fazer sombra, durante algum tempo, é mesmo a única esperança que resta a uma figura menor.