4.2.12

poesia e ciência (3).



O olho algébrico

Trazia nas mãos uma pequena bola que atirava ao ar ou fazia saltar no chão, ou percutir contra as paredes, um zero que, associado a qualquer outro objecto, fosse este um móvel, um tapete ou um adereço, o convertia a ele também num algarismo, um elemento com o qual compunha então um número num plano cada vez mais vasto onde assim tudo acabava por poder perspectivar-se em termos aritméticos. Os mais heterogéneos objectos combinavam-se entre si em melindrosas adições, ávidas multiplicações que tudo pareciam arrastar e consumir, operações que pela forma como o próprio ar nelas entrava nos levavam a pensar que respirassem e onde fatalmente o zero era a entidade soberana - um olho a humanizar o raciocínio, um olho a que a abstracção ia buscar urna expressão quase animal, entranhas que em nenhum outro lugar o pensamento encontraria. A pulsação algébrica do espaço aproximava-o do tempo, o zero ia e vinha e nesse movimento era visível o vazio que ele também significava, a conversão dos dados dos sentidos em conceitos dum rigor gémeo do vidro, e entre eles eram tão estreitas as passagens que quase podíamos tocar no destino com as mãos, as quais contra o que quer que assim tocassem eram então findas como as trevas.

Luís Miguel Nava, Poesia completa, 2002