5.1.12

andamos a ser demagogos acerca do Pingo Doce?


Sobre a história do Pingo Doce e a excursão à Holanda, reagi espontaneamente (no Facebook), de imediato, do seguinte modo: «Que há pessoas capazes de tudo para ganhar (muito mais) dinheiro, já se sabia. Que alguns desses negociantes, de vez em quando, se disfarçam de grandes patriotas para dourar a pílula e angariar publicidade gratuita, também já se sabia - mas o descaramento e a rapidez com que colocam e tiram a máscara, essa ainda chega a ser surpreendente. Que haja por aí "intelectuais orgânicos" que entram na palhaçada, até mete dó. Mete dó de nós, como país, que ainda vai nas conversas destes tratantes.»

Depois, pela pena de uma pessoa que estimo e respeito intelectualmente, o André Barata (No Reino da Dinamarca), li o comunicado da empresa aos trabalhadores, do qual constam, entre outros, os seguintes pontos: «4. A carga de impostos a pagar pelo Grupo Jerónimo Martins em Portugal mantém-se rigorosamente inalterada com esta operação. 5. A Sociedade Francisco Manuel dos Santos já esclareceu publicamente que a operação não tem implicações fiscais e que não existe alteração à carga fiscal que incide sobre os dividendos, a qual é da inteira responsabilidade dos Accionistas da Sociedade.» A sugestão era: a decisão é fiscalmente neutra; o que se anda por aí a gritar contra tal decisão é demagogia populista. Acusação que, mesmo que não me seja pessoalmente dirigida, me alerta. Perguntei se não havia nenhuma subtileza jurídica no texto que o tornasse menos claro do que parecia, mas não encontrei resposta clara.

Vejo, entretanto, que Pedro Santos Guerreiro, no sítio do JornaL de Negócios, ao fim da noite de dia 3, escrevia: «Uma empresa tem lucro e paga IRC; depois distribui lucro pelos accionistas, que pagam IRC (se forem empresas) ou IRS (se forem particulares). Neste caso, a Jerónimo continua a pagar o mesmo IRC em Portugal (e na Polónia); o seu accionista de controlo, a "holding" da família Soares dos Santos, transferiu-se para a Holanda. Por ter mais de 10% da Jerónimo, essa "holding" não pagava cá imposto sobre os dividendos e continuará a não pagar lá. Já quando essa "holding" paga aos membros da família, cada um pagaria 25% de IRS cá - e pagará 25% lá. Com uma diferença: 10% são para a Holanda, 15% para Portugal. Porque tomou a família uma decisão que, sendo neutra para si, prejudica o Estado português? Pela estabilidade e eficácia fiscal de lá, que bate a portuguesa. Pelo acesso a financiamento, impossível cá. E porque a família tem planos de crescimento que não incluem Portugal.»

Quer dizer: a empresa tem as suas razões (entre as quais, querer ir criar riqueza para outros lados, que não "a ditosa pátria minha amada" que fazia jeito em tempos de polémica política), mas a neutralidade fiscal só existe do ponto de vista das empresas do grupo e dos seus donos; do ponto de vista de Portugal, não existe, Portugal fica a perder.
Se assim é, o comunicado da Jerónimo Martins aos seus trabalhadores é, objectivamente (nos pontos 4 e 5 acima mencionados), um jogo de palavras, e subtilezas jurídicas, pensado para enganar os leitores incautos. Faz isso explorando o desconhecimento do leigo acerca da arquitectura organizacional do grupo e da relação fiscal entre as empresas e os seus donos. Será isso jogo limpo com o país? É uma pergunta que se pode, legitimamente, fazer a quem antes nos quis dar lições de portuguesismo.

Continuo à espera de ser esclarecido. Mas quando vejo Bagão Félix, na TV-Crespo, a comparar esta atitude com a das pessoas que vão a Espanha abastecer os seus automóveis particulares, fico convencido de que se calhar não há mais nada para esclarecer. E não há demagogia nenhuma em dizer a estes senhores que se deixem de conversas da treta sobre centros de decisão nacional, sobre truques e coisas que tais, e que deixem de se armar em patriotas.