19.11.11

uma experiência teatral.



A peça A Gaivota, do russo Anton Tchekov, representada pela primeira vez em 1896, tende a ser vista como um exemplar da estratégia "uma peça dentro da peça", mas é também uma grande embrulhada de amores desencontrados em série, e de expectativas de vida geridas de forma desastrada. Pode, provavelmente, ser bem caracterizada, nas suas múltiplas leituras, pelo facto de, apesar de acabar com um suicídio, o autor ter dito do seu texto que era uma comédia.
Ora, não é nada eficaz, quando um texto tem múltiplas leituras, tentar iluminá-lo pela redução dessas leituras. Isso empobrece, não ilumina. Isso desvitaliza, não respeita a polifonia. Acaba sempre por resultar numa traição à obra. Nesse sentido, foi interessante ver a leitura que Enrique Diaz (Companhia dos Atores), do Rio de Janeiro, fez da peça. Tivemos ocasião de assistir à representação, na passada segunda-feira em Bruxelas, no âmbito da Europália, nesta edição dedicada ao Brasil.
A Gaivota é posta em cena como parte do trabalho de uma companhia para pôr A Gaivota em cena. A companhia está a resolver os significados da peça à nossa frente, seguindo até certo ponto a história original (embora seguindo pouco o texto), mas interrogando provocadoramente os dados de partida. Por exemplo, uma actriz pergunta, logo no princípio, pelo sentido do suicídio final, fazendo com que "o respeito pela história" seja imediatamente secundarizado em relação ao aspecto questionador deste espectáculo. Os actores-personagens baralham as personagens-personagens, comentando e discutindo o material original. O encadeamento amoroso na peça original (A ama B que ama C que ama...) é aprofundado pela troca de papéis, tornando uma rede de assimetrias numa malha tão plástica que parece que, afinal, todos vão ter a sua oportunidade de amar e ser amado pela pessoa-personagem certa (graças à troca de papéis, A vai ser correspondido confusamente, não pela personagem B, mas pelo actor que fez de B e agora faz de D). A confusão da vida daquelas personagens foi bem condimentada pelo factor multi-linguístico: da versão original em português (do Brasil), com legendas em francês e flamengo, passou-se a uma mistura de falas em português (50%), francês (40%) e flamengo (10%), o que introduziu (além de uma cumplicidade nova com a plateia), um suplementar patamar de fragmentação (mas gerido de modo a não confundir).
Frequentemente desconfio destas estratégias de desconstrução (tenho uma certa embirração com a desconstrução), às vezes por achar que são apenas uma desculpa para entregar o material ao espectador sem mastigação nenhuma (preguiça da companhia), outras vezes por faltar verosimilhança ao exercício (torna-se demasiado previsível). Desta vez, acho que a desconstrução não caiu nesses vícios. Conseguiu mesmo, em certos momentos, deixar-nos na dúvida sobre o que se estava a passar. Por exemplo, ainda não sei a avaria do sistema de legendagem, mais a respectiva reposição em tempo real com os actores a participarem na localização do momento no texto, foi mesmo uma avaria ou foi mais um momento de exploração das virtualidades das múltiplas camadas do exercício.
Claro, só foi possível dar algum sentido a este exercício graças ao facto de já termos sido expostos a uma representação "em boa e devida ordem" da peça na sua inteireza original, o que, pelas bandas de Lisboa, nos proporcionou o Teatro da Cornucópia em 2006. Falhámos a passagem desta encenação por Lisboa (2008, no CCB), mas tivemos a sorte de recuperar agora desse percalço. Boa informação sobre esta companhia, aqui (em pdf).