16.3.11

forma e conteúdo na crise in(s)talada


A entrevista que o PM José Sócrates deu ao país ontem à noite foi muito clara: a cara de espanto que o PSD faz por serem precisas medidas adicionais para baixar mais o défice para 2012 e 2013 é uma máscara de teatro; as medidas que o governo anunciou ainda para 2011 não afectam directamente o "bolso" dos portugueses, já que consistem basicamente em rigor acrescido, do lado do Estado, no que já estava no orçamento aprovado pelo parlamento. O ponto está em que Passos Coelho fez as contas e concluiu que, se não precipita eleições, será apeado da presidência do PSD pelos seus companheiros - e ele não andou a investir tanto tempo nesta empresa para estender o tapete a Rui Rio e ao cavaquismo. Basicamente, o que conta para PPC é, agora, a sua própria sobrevivência política.
Quanto ao resto, que é o país e as pessoas que tem dentro, vamos lá ver se nos entendemos: a receita económica que está a ser aplicada é errada. A austeridade excessiva prejudica o funcionamento da economia e algumas das medidas previstas não favorecem nada o necessário crescimento da economia. Quer dizer: os sacrifícios até podem ser necessários, mas a dose é anti-económica.
Dito isto, o que fazemos, como nação? Dizemos aos mercados que eles são doidos e prescindimos dos empréstimos, vivendo com o que temos? Declaramos falência e deixamos de pagar o que devemos, com a consequência de que por uma boa meia dúzia de anos ninguém nos dá um tostão? Se alguém defende isso, que o diga claramente ao país.
A outra alternativa é sermos protegidos da voracidade dos mercados por algum mecanismo europeu, sem FMI. É o que começou a ser conseguido na semana passada, com a ajuda da corajosa intervenção de Sócrates junto dos seus pares: ninguém vem dar-nos a receita da governação, o BCE intervém para travar a voracidade dos especuladores quando nós vamos ao mercado pedir dinheiro, Portugal não sai do mercado nem entra em falência. A contrapartida é que a Europa, com a Alemanha à cabeça, exige "sinais" que relevam mais da sua ideologia política do que da racionalidade económica (como a ideia de embaratecer os despedimentos). Isso é mau, pois é. Mas qual é a alternativa? Podemos dizer que não fazemos nada disso - e eles dizem que então não há mecanismo de ajuda para ninguém, ou que só há para quem aceitar as condições. Mais uma vez, se alguém quer sugerir que Portugal se desenrasque só com o que produz, prescindindo dos empréstimos dos outros e do dinheiro dos parceiros europeus - se alguém quer sugerir isso, que o faça abertamente. Não façam é de conta que podem comer o bolo e continuar a ter o mesmo bolo para exibir na montra.
Sócrates deu ontem explicações claras. Devia ter dado essas explicações claras ao país antes de ir para a reunião europeia da semana passada. Aquilo que foi anunciado na semana passada foi uma trapalhada. Mesmo para quem conhece bem os mecanismos e percebia que estava a ser antecipado o anúncio de algo que de qualquer modo tinha de ser apresentado até Abril, e sabia que o anúncio dizia em parte respeito aos próximos anos e não a 2011, mesmo esses não ficaram com os dados suficientes para distinguir as várias questões anunciadas. E, com essa falta de clareza no anúncio, mais uma certa falta de preparação institucional do "pacote", o governo deu o flanco à fome que Passos Coelho tem de se antecipar ao assassinato que os seus pares lhe preparam (ou preparavam).
Nessa matéria, Sócrates esteve particularmente mal quando afirmou que lhe interessa a substância, enquanto outros se entretêm com a forma. Inaceitável. A protecção da democracia está na forma. Não vamos voltar à história da "democracia formal", que era conversa "revolucionária" contra a democracia que realmente existe, em contraponto com a "democracia substancial", que ninguém sabe o que é. Percebe-se que o filme não está fácil e a ginástica que se exige aos governantes é muita: mas há pontos em que é preciso compreender quanto conteúdo vai na forma. Em democracia, a forma é uma garantia. Ferir a forma não deixa intocado o conteúdo.
De qualquer modo, caminhamos provavelmente para uma clarificação. O que é bom. Pode ser que os responsáveis políticos ainda arranjem forma de o país não pagar com língua de palmo essa clarificação. Valerá alguma coisa, ainda, a ideia de responsabilidade partilhada?

(O Tiago Tibúrcio, tal como outros que já comentaram este texto, discorda de um aspecto deste apontamento. Talvez tenham razão. O Tiago expõe essa crítica aqui.)

(título "corrigido", pela inserção de um "s" entre parêntesis... por me ter apercebido que a brincadeira não estava a ser, digamos, compreendida como tal...)