22.3.11

A Cacatua Verde



“A Cacatua Verde”, de Arthur Schnitzler, ainda está no D. Maria até 27 de Março, encenada por Luís Miguel Cintra, numa co-produção com o Teatro da Cornucópia. Já fomos ver a 5 de Março, mas ainda não houve tempo para falar disso aqui. Façamo-lo agora, embora brevemente.
A peça, em si mesma, como texto, é deslumbrantemente filosófica e política. A acção desenrola-se na noite desse emblema da Revolução Francesa que foi a tomada da Bastilha, numa cave de Paris, numa taberna original. Original por aí se fazer cada noite uma estranha performance: há actores que fazem de marginais, que se gabam das malfeitorias que praticaram, dando a ideia de serem gente perigosa que pode a qualquer momento revisitar os mesmos crimes; há nobres à procura de excitação que vão à taberna para sentirem o frémito do perigo, de estarem no meio daqueles “criminosos”, de que já não se sabe se o são com ou sem aspas. E depois há os que praticaram crimes e fazem de conta que só fazem de conta o que verdadeiramente fizeram. E, a páginas tantas, a mentira e a verdade tornam-se indistinguíveis para muitos dos circunstantes, circunstantes que deixam de estar claramente distribuídos pela categoria dos actores e pela categoria dos espectadores. Estar do lado da verdade ou estar do lado da mentira torna-se um problema vivido, tal como estar do lado dos que ludibriam ou dos que são ludibriados deixa de ser fácil de distinguir. Eu, que nem sou grande apreciador do tema do teatro dentro do teatro, leio este texto como uma excelente apropriação dessa questão para a ultrapassar e lhe dar uma volta filosófica pertinente, ao mostrar que o problema maior é a nossa dificuldade em distinguir as várias camadas da realidade e as várias máscaras com que ela se nos apresenta.
A leitura do texto cria (pelo menos a mim, criou) a expectativa de um turbilhão: com um elevado número de personagens/actores em palco simultaneamente (25), num crescendo de ambiguidades que se retorcem sobre si mesmas, orquestradas pelo taberneiro/demiurgo daquele universo fechado a espelhar o vasto mundo convulso que está cá fora, a caminho de uma violência engendrada pela própria dinâmica de certas duplicidades – esperava a visualização de um vórtice em palco. Fiquei um pouco surpreendido por um ritmo contido, que por momentos funciona, por deixar espaço ao espectador para digerir as voltas que o mundo dá – mas, ritmo contido esse que, outras vezes parece uma “câmara lenta” forçada. Esse ritmo de slow motion pode perfeitamente ser um recurso estilístico, destinado a obrigar-nos a pensar em algo que não deve ser consumido como se fosse uma representação naturalista – e que somos obrigados a aceitar como encenação, como artifício, como apresentação, como quadro pintado com as tintas escolhidas pelo pintor e não fotografia de reportagem. Talvez seja isso, mas, naquele dia, esse tempo lento imposto a uma história em turbilhão causou-me desconforto. O que, para teatro do bom, não é mau.
Vale muito a pena. Sugiro a leitura do texto, antes ou depois de ver: vale uma valente reflexão sobre a política.
Ah, já me esquecia: “A Cacatua Verde” era o nome da tal taberna. E não há cacatuas verdes.

(Nota: texto corrigido após comentário de JPN.)