29.11.10

o triunfo do jornal de sexta


Revelações do Wikileaks. EUA alargaram espionagem a líderes estrangeiros.

Pode haver uma ou outra revelação, no meio do imenso pacote fornecido pela Wikileaks, que seja de relevante interesse público. Contudo, pelo que se pode ler, até ao momento, trata-se, pelo menos em 99,9999% das "informações", de pura coscuvilhice. Claro que há sempre uma quota de almas puras que abrem a boca de espanto quando "se descobre" que as grandes potências fazem espionagem a torto e a direito. Claro que há sempre uns cândidos que pensam que os "grandes líderes" se amam intensamente a partir do momento em que entram em acordos de comércio livre - e ficam muito decepcionados quando descobrem que isso são apenas negócios estrangeiros. É essa pureza e candura, que afinal não passa de ignorância ou pura distracção, que é explorada por estas "revelações". A verdadeira crítica das relações internacionais, que passa pela análise do que é força e do que é direito na arena global, que passa pela questão da efectividade do direito internacional - não passa nada por estes incidentes. Mas a verdadeira crítica do que quer que seja não interessa nada a estes cavaleiros da revelação escandalosa.
Todos nós, no seio dos nossos lares e com os nossos amigos, dizemos coisas que, publicadas nos jornais, pareceriam enormidades. E/ou fazemos coisas que poderiam cair sob a alçada da lei. Nem por isso se torna sensato um dito muito comum dos partidários da invasão de privacidade: "eu não tenho nada a esconder, podem escutar-me à vontade". O mito da completa "transparência", a complacência com as quebras da reserva da interioridade no caso da vida privada, é um tique totalitário. Transposta para a vida institucional, concebendo como "oficiais e publicáveis" quaisquer palavras escritas, ditas - e talvez até imaginadas - esta mitologia é, no mínimo, devedora de uma concepção estranha da forma como funcionam os humanos. Dar relevância pública ao facto de um diplomata qualquer achar que o presidente francês é autoritário - adianta o quê à gestão da coisa pública mundial? Publicar que a Arábia Saudita quer que o Irão seja bombardeado - ajuda o quê à resolução do puzzle em causa? Nada, não adianta nada. Mas perturba muita coisa. O que se perde é, a meu ver, muito mais do que se ganha. A menos que se pense que a política passará a ser feita por máquinas, e que as máquinas serão mais éticas do que os humanos, tudo isto serve apenas para tornar mais poluídas as relações internacionais e para desviar das questões relevantes a percepção do mundo que temos.

O 11 de Setembro da diplomacia dos EUA? Talvez, antes, o triunfo do "jornal de sexta". Isto é o estilo de um certo telejornal de sexta-feira elevado ao estatuto de paradigma nas relações internacionais.