18.6.10

na morte de José Saramago


A morte de José Saramago desperta-me uma das (para mim) mais amargas reflexões acerca das relações entre humanos. José Saramago é a instância mais forte da minha questão privada com a dissonância entre admirar a obra de uma pessoa e ser muito crítico dessa pessoa como cidadão.
José Saramago escreveu dois ou três livros que eu reputo de muito bons. Antes de tudo, o Ensaio sobre a Cegueira. Também o Memorial do Convento, algo que não entendi bem a primeira vez que tentei entrar, tendo tido que regressar. E, ainda, Todos os Nomes. Também escreveu coisas absolutamente desprovidas de qualquer engenho, entre os quais o (muito admirado pelos que o tomam como bandeira ideológica) Ensaio sobre a Lucidez, que é um tratado sobre a banalidade. Dois ou três livros verdadeiramente relevantes é, a meu ver, crédito suficiente para fazer um escritor admirável.
Por outro lado, José Saramago foi, como cidadão e como agente político, capaz de algum rasgo aqui ou ali - mas, a seu tempo, foi fautor de excessos e de impulsos criticáveis, nomeadamente nos tempos da revolução. E nunca fez uma outra leitura desses tempos, sempre tendo querido compatibilizar as suas várias faces num só homem. Isso, em abstracto, é louvável - mas, neste caso, sempre vi isso como uma encenação de si mesmo, como uma forma de deixar pistas baralhadas para a história, numa espécie de antecipação arrogante do julgamento dos vindouros. E, verdadeiramente, isso nunca o tornou simpático aos meus olhos.
Claro que isto só interessa a mim. Como não estou obrigado a fazer homenagens, não é grave. De qualquer modo, estas reflexões vieram a propósito deste José. E, mais tarde ou mais cedo, teremos meia dúzia de pessoas à volta da nossa pira ardente a pensar se a nossa partida lhes deixa alguma coisa para pensar. Saramago, ao menos, deu-nos que pensar.