11.5.10

Patrícia Gouveia | jogos de realidade alternativa | entrevista


Patrícia Gouveia trabalha e vive em Lisboa, onde nasceu. Doutorada em Ciências da Comunicação (Audiovisual e Media Interactivos, Jogos Digitais) pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (2008). Trabalha em media arte e design desde meados da década de noventa. Actualmente é professora Auxiliar na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, onde é também investigadora no MOVLAB. A sua investigação centra-se nos Playable Media, ficção interactiva e artes digitais como um lugar de convergência entre o cinema, a música, os jogos, as artes e o design. É editora do blogue Mouseland desde 2006 e conferencista no mestrado de Ciências da Comunicação da FCSH/UNL.




Patrícia Gouveia concede esta entrevista como responsável pela concepção, design e gestão do projecto “Brincar com a Poesia”, uma instalação interactiva/jogo (alternate reality game ou ARG) que envolve a leitura activa da obra de 8 poetas portugueses. O jogo consiste em vários momentos e está estruturado de forma a envolver os participantes tanto em espaços físicos, a Biblioteca Municipal de Oeiras, o Parque dos Poetas e a Árvore da Poesia, como também neste espaço on-line. Brincar com a Poesia vai ter início no dia 19 de Maio de 2010 e prolonga-se durante um mês até ao dia 19 de Junho de 2010.

Passemos então à entrevista.


Machina Speculatrix - A iniciativa “Brincar com a Poesia” tem por base o conceito de “alternate reality game” (jogo de realidade alternativa). O que é isso, não neste caso, mas em geral?

Patrícia Gouveia - Os Alternate Reality Games (ARGs) são jogos que envolvem um conjunto de jogadores na construção de uma ficção interactiva que normalmente está ancorada no mundo real, permitindo a passagem de uma realidade na rede (on-line) para uma realidade sediada num espaço físico (off-line). Por vezes, mas nem sempre, tira-se partido de interacções mistas onde jogadores on-line têm que colaborar com jogadores off-line para assim resolverem situações de jogo como, por exemplo, ajudar a resolver enigmas ou contribuir para a evolução da plataforma, cooperando de forma construtiva em ambos os espaços. O sentimento de comunidade surge, nestes espaços mistos, por via da colaboração, mas também da competição entre jogadores e, no final, a plataforma on-line reflecte os movimentos dos diversos participantes e os vários artefactos criados no âmbito da experiência lúdica.


Machina Speculatrix -  Como é que estes jogos de realidade alternativa se enquadram na sua investigação?

Patrícia Gouveia -  Depois de ter trabalhado alguns anos em design gráfico e multimédia (CD-ROMs e Web), tanto em termos comerciais como em ambientes artísticos, passando pela net.art e pela game arte, deparei-me com a necessidade de investigar o campo dos jogos digitais para compreender realmente o que divergia, em termos de experiências possíveis, na estética digital. Estava no início da primeira década do século XXI e tentava compreender o que diferenciava as artes digitais das artes analógicas. Licenciei-me em Artes Plásticas / Pintura (FBAUL) e, posteriormente, tirei uma pós-graduação em Artes Digitais (Escola das Artes, Católica do Porto). Para mim tornara-se evidente, em meados dos anos noventa do século XX, que os comportamentos dos artistas na época digital eram muito diferentes dos precedentes e que por isso tinha que investigar a cultura numérica a partir de uma análise profunda às suas origens. Foi isso que fiz no meu doutoramento.
Ora, se a máquina de filmar trouxe consigo a película, o filme e a possibilidade de registar o movimento, os computadores, por um lado, trouxeram consigo os jogos digitais e a simulação, por outro, os jogos analógicos são tão antigos como a própria cultura. A partir daqui tornava-se evidente para mim que tinha que investigar o conceito de jogo e a forma como este sempre andou “de mãos dadas” com os diversos movimentos artísticos durante todo o século XX.
Talvez o conceito de brincadeira seja aquele que melhor faz a ponte entre arte e jogo, arte e entretenimento, arte e design. Os exemplos das intersecções entre máquinas e jogos são inúmeros, desde o primeiro espécime, um jogo de ténis para dois em osciloscópio, de William Higinbotham em 1958, ao jogo da imitação de Turing, passando pela forma como a máquina tem simultaneamente recorrido a aspectos lúdicos para se legitimar (consolas, arcadas, dispositivos portáteis, Web, sensores). Assim, a partir de uma análise da cultura da simulação, deparei-me com uma enorme semelhança desta com a história do cinema e por aí fui desenvolvendo uma forma de pensar que reflecte a convergência dos meios, de linguagens gráficas e de tecnologias, naquilo a que se pode chamar a estética transmedia, isto é, ficções e narrativas que tiram partido na sua estrutura de inúmeros media, diferentes estratégias visuais e tecnologias.
Não há melhor espaço do que os alternate reality games para pensar na estética transmedia, pois estes exprimem muito bem a convergência de espaços e linguagens e apelam à performance, à participação activa e à inclusão de múltiplas pessoas e comunidades.


Machina Speculatrix - Vamos supor que podemos dizer que as sociedades humanas convergiram para sociedades artificiais quando houver um número significativo de máquinas intercaladas nas relações sociais e quando os humanos não souberem distinguir essas máquinas (robots, por exemplo) dos humanos ou, alternativamente, saibam distinguir mas as tratem com a mesma postura intencional com que tratem os humanos (supondo que esses robots também têm crenças e desejos). Os recursos desenvolvidos para os jogos de realidade alternativa podem aproximar-nos desse cenário? Como? Porquê?

Patrícia Gouveia - Nas arquitecturas on-line é cada vez mais difícil, do ponto de vista psicológico, diferenciar a vida on-line da vida off-line. Em termos físicos ainda temos alguns problemas, pois os teclados, ratos, joysticks e outros periféricos, ainda são bastante impositivos e maltratam o corpo (tendinites, persistência retiniana, dores nas costas, são apenas alguns dos efeitos desagradáveis potenciados por algumas horas de jogo). No entanto, do ponto de vista emocional a experiência de jogo é absolutamente credível e têm efeitos na vida real – ou não fossem hoje os jogadores de jogos on-line um verdadeiro fenómeno de êxodo para o virtual.
Neste sentido, alguns exemplos a assinalar são as experiências de criação de avatares inteligentes de autoria de Mark Stephen Meadows, que quer construir um “retrato” do pai falecido e que também por isso se dedica à criação de emoções artificiais em ambientes como o Second Life. A ideia é dotar o avatar de uma base de dados de acções e tiques associados à pessoa do jogador que o criou para que, quando este não está on-line, a personagem se comporte como se fosse a pessoa de carne e osso (quantos psicólogos artificiais, do tipo Eliza, foram criados com o intuito de “enganar” os humanos?).
A mediação entre humanos e máquinas encontra o seu expoente, parece-me, nas plataformas para múltiplos jogadores quando estes, por vezes, não conseguem já distinguir se estão a relacionar-se e a comunicar com outro humano ou com um NPC (non player character ou personagem com a qual podemos interagir mas não jogar) ou bot de inteligência artificial. Neste contexto, estas plataformas funcionam em simultâneo como plataformas de sociabilização e como lugares de jogo onde diferentes comunidades encontram um lugar seguro e controlável que lhes permite exercitar aspectos impossíveis de testar na vida real. O controlo no jogo é para os jogadores um escape das dinâmicas sempre imprevisíveis da realidade. Para uma aproximação a estas questões cf., por exemplo, a comunicação de Jane McGonigal aqui.


Machina Speculatrix - Vê alguma relação entre estes jogos de realidade alternativa e o velho projecto da Inteligência Artificial ou, agora, a Nova Robótica?

Patrícia Gouveia - Os jogos digitais, tal como as artes e outras aplicações visuais associadas à medicina e à saúde, adoptaram três paradigmas distintos que hoje se associam num projecto híbrido, a saber, a adopção de teorias provenientes de uma cultura mais ligada à psicologia e à cognição, com a simulação da memória como grande questão. Entretanto, nos anos oitenta começam a despoletar as ideias da vida artificial e em 1997 o Deep Blue ganhou ao Kasparov. Assim, literalmente o processo inverte-se e as arquitecturas da simulação top-down dão lugar às estratégias bottom-up. Em vez de se tentar simular a consciência que afinal ninguém sabe o que é, porque não olhar para as ecologias animais e não se tentam simular antes comportamentos inteligentes dos grupos e não dos indivíduos? Do hardware ao software até à robótica, a percepção humana surge como o problema a resolver: como simular a percepção humana em ambiente artificial?
Finalmente, e com um conjunto de sistemas cada vez mais robustos em matéria comportamental, ou seja, capazes de repetir inúmeras vezes comportamentos e acções adequado(a)s às situações em causa, a questão passa a ser como criar emoções suficientemente credíveis, como fazer “bonecos animados” que se comportam como seres humanos?
A partir daqui as investigações são inúmeras e deparamos com sistemas wetware que simulam o nível molecular, com sistemas celulares que são essencialmente sistemas de software do tipo algoritmos genéticos, os sistemas de hardware associados à robótica e, finalmente, a vida, a nível populacional, remete-nos para software em que os modelos das suas equações substituem os modelos da vida em que cada organismo é um programa, um autómato finito ou uma rede neural.
Os jogos digitais acompanharam todas estas evoluções e um caso que seria interessante salientar é o jogo The Thing, inspirado no filme do mesmo nome de John Carpenter. Se no filme o “monstro” infiltrado copia o ADN humano, no jogo os monstros com os quais lutamos activamente têm um sistema de inteligência suficientemente robusto e emergente para copiarem e “aprenderem” os movimentos e formas de interacção dos jogadores. As ecologias de Life Spacies de Christa Sommerer & Laurent Mignonneau são outro exemplo possível.
No caso dos jogos de realidade alternativa a questão não se coloca de forma tão expressiva, para já, pois estes jogos vêm chamar a atenção para a importância da colaboração e da ocupação dos espaços urbanos, culturais, entre outros, precisamente para colmatar o problema do isolamento e da frieza das interacções na rede. Julgo, no entanto, que a tendência no futuro é que estes espaços coabitem com espaços ficcionais do género Second Life e World of Warcraft e, neste contexto, acabem por ser inundados por personagens inteligentes que são criações artificiais, meio humanas, meio máquinas.
Para uma viagem pela maravilhoso mundo dos ARGs ver, por exemplo, alguns vídeos da empresa americana 42 Entertainment aqui, o projecto Uncle Roy All Around You ou Can You See Me Now? realizado pelos Blast Theory para o Institute of Contemporary Arts (ICA) de Londres.


Machina Speculatrix agradece enormemente a Patrícia Gouveia a interessante entrevista que nos concedeu.