28.1.10

A Cidade, teatro

Prólogo. A Cidade, a partir de textos de Aristófanes, pelo Teatro da Cornucópia, no Teatro Municipal São Luiz em Lisboa, teatro na cidade. Fomos ontem. Luís Miguel Cintra, a encenar, surpreendeu-nos: o seu teatro metafísico, a arrancar as tripas agarradas ao cérebro, deu agora lugar a uma mistura de efeitos do teatro grego com a revista à portuguesa. Engana-nos: faz a coisa parecer mais ligeira. E torna-se, verdadeiramente, comestível em alto grau. Até pela ousada tradução. E pela linguagem que toda a gente pode ser levada a pensar que compreende.


Primeiro quadro. Defeito. Este espectáculo de teatro tem um defeito: é demasiado longo, desnecessariamente. Três horas e meia, mais intervalo. Sendo construído a partir de pedaços de textos vários, constando de vários quadros pouco mais do que justapostos, podia ter sido marginalmente podado. Exige resistência física. Está dito, vamos ao que interessa.

Segundo quadro. Sinopse.

«Diz-se que foi na Grécia Antiga que nasceu a Civilização Ocidental e que foi em Atenas, vários séculos antes de Cristo, que nasceu a Democracia. Nas comédias de Aristófanes, por sinal um conservador, no violento e insurrecto humor com que nelas retrata a vida daquela cidade ‘perfeita’, nestes textos escritos há 2.500 anos, fomos encontrar o material para a composição do guião deste espectáculo. É com as confusões e as dificuldades da vida numa sociedade que se quer democrática, a corrupção da sua política, o seu desejo de paz, as suas saudades do campo, a maneira como convive com os seus ‘poetas’, as peripécias sexuais e conjugais que se geram na coexistência do público e do privado, em suma, com a vida da polis, e através das mais que inevitáveis semelhanças com os contratempos dos nossos dias, que este espectáculo quer brincar. Uma grotesca metáfora de todas as Cidades, construída por um grande grupo de actores no palco do São Luiz, teatro da cidade de Lisboa.»
Luis Miguel Cintra

Terceiro quadro. Interpretação.
Há por ali muita gente que não mora no Bairro Alto, na casa da Cornucópia. E isso nota-se, mesmo quando são caras conhecidas do grande público. E alguns dos intérpretes habituais da metafísica soturna de Cintra não chegam a ter espaço para a sua alma. O conjunto funciona, mesmo assim.



Quarto quadro. Um destaque. O último quadro, intitulado "A fuga para o céu", retirado de "As Aves", do Aristófanes de que aqui a coisa se alimenta, é notável. O texto sugere uma crítica social radical mas ingénua, com os olhos de um anarquismo bondoso e poético. O elemento central deste quadro é a personagem Poupa (o pássaro), aqui desempenhado pela actriz Luísa Cruz, magnificamente caracterizada como um grande pássaro. Ora, a Poupa diz o texto tão magnificamente que muitas vezes parece um pássaro a falar, um gorjeio, um trinado. Ao mesmo tempo, o movimento do corpo, nas pequenas subtilezas do agitar das asas, do mover a cabeça, do posicionar o bico, compõe uma ave de um efeito notável. Não sei até que ponto o texto terá sido burilado a pensar nesse efeito (ignorâncias minhas), mas a sua interpretação é um tempo de encantamento puro. Apetece-me voltar só para ver dois ou três quadros - e um deles seria claramente este.



Epílogo. Até 14 de Fevereiro. No São Luiz. Pelo Teatro da Cornucópia. Eu sou suspeito, mas mesmo assim aconselho: a não perder. Como perder um espectáculo que Cintra confessa que foi querido como uma brincadeira?
(As fotos são do sítio do Teatro do Bairro Alto.)