31.12.09

a riqueza humana do Natal

13:18


Não sou realmente muito de espírito natalício e abomino em particular a industrialização das prendas a esmo. Vejo, contudo, que presentear é uma forma de reconhecer. "Estás aí, olá." Isso pode ser tão prazenteiro para quem dá como para quem recebe. Assimetricamente, não presentear não é, necessariamente, uma forma de não reconhecer. Em geral, há muitas pessoas que reconheço como parceiros de aventura e que não presenteio. Isso depende de inúmeros formalismos e informalismos, de convenções e de hábitos. Sem rugas por esse lado. Claro, pode sempre fazer-se com que não presentear seja uma forma de não reconhecer. Por exemplo, usando o presentear como forma de distinguir: "Isto é para ti. Para ti (outro), bom dia e cara alegre e passa adiante." Não sabiam que são também estas inúmeras possibilidades que fazem a riqueza humana do Natal?!


sem comentários



Ontem ao fim da tarde, numa das lojas FNAC desta cidade de Lisboa, um empregado do sector da livraria perorava com entusiasmo fatigante junto de um casal de clientes em frente da estante da filosofia, tentando vender o suposto alto coturno intelectual de certa figura, dizendo: "Se o Agostinho da Silva fosse vivo seria o Medina Carreira da filosofia".
Fugi dali apressadamente, hesitando entre gargalhar audivelmente ou chorar em silêncio. É que entendo dever guardar-se um certo respeito pelos mortos, quanto mais não seja por eles provavelmente não terem como se defender.


30.12.09

a vida vencerá. pois, pois



Léon Ferrari, Ciertamente la vida vencerá, da série L'Osservatore Romano, 2 de Abril de 2001
(colagem de papel impresso sobre papel impresso)
[Fotografado no Museo e Centro de Arte Rainha Sofia, Madrid, Dezembro de 2009]

página 204

18:19

«Uma outra vez, durante o jantar, os raios de um esplêndido pôr-de-Sol caem sobre a mesa dos “russos distintos”. Haviam corrido as cortinas das portas da varanda e das janelas, mas sobrou algures uma fresta, através da qual um clarão vermelho, frio, mas deslumbrante, abre caminho e fere justamente a cabeça da srª Chauchat, de maneira que, na conversa com o compatriota de peito sumido, à sua direita, ela tem de resguardar os olhos com a mão. É um incómodo, mas pouco grave; ninguém se preocupa, a própria interessada nem sequer parece reparar na pequena contrariedade. Mas Hans Castorp descobre-a através de toda a sala. Observa-a durante alguns instantes. Examina a situação, acompanha o caminho do raio e fixa o ponto de onde incide. É da janela ogival, lá atrás, à direita, no canto entre uma das portas da varanda e a mesa dos “russos ordinários”, muito distante do lugar da Mme. Chauchat e quase tão afastado do de Hans Castorp. Toma uma decisão. Sem proferir qualquer palavra, levanta-se, com o guardanapo na mão, passa, diagonalmente, por entre as mesas, atravessa a sala, une cuidadosamente as cortinas cremes, certifica-se, com um olhar por cima do ombro, de que o clarão do poente já não pode entrar e de que Mme. Chauchat está livre, e, esforçando-se por parecer indiferente, volta à sua mesa. Um jovem atencioso que faz o necessário, já que mais ninguém se lembra de fazê-lo. Muito poucos notaram a sua intervenção; mas a srª Chauchat sentiu-se imediatamente aliviada e virou-se; conservou essa posição até que Hans Castorp alcançasse o seu lugar e, de novo sentando-se, olhasse para ela; depois do que lhe agradeceu, com um sorriso cheio de uma amigável surpresa, isto é, avançando um pouco a cabeça, sem propriamente a inclinar. Ele retribuiu com uma ligeira mesura. O seu coração quedou-se imóvel, parecendo ter cessado de pulsar. Somente mais tarde, quando tudo terminara, se pôs a martelar, e só então Hans Castorp percebeu que Joachim tinha os olhos discretamente cravados no prato, ao mesmo tempo que observou que a srª. Stohr dava uma cotovelada ao Dr. Blumenkohl e que o seu risinho afogado procurava olhares cúmplices em toda parte...
Relatamos factos quotidianos, mas o quotidiano torna-se estranho quando se desenvolve em terreno estranho.»

Thomas Mann, A Montanha Mágica

29.12.09

how wings are attached to the backs of angels






página 181

14:21

«E a gravidade do caso de Hans Castorp, o seu grau de enfermidade, mal lhe davam o direito de exigir uma atenção especial. A Srª. Stohr, por exemplo, por mais estúpida e inculta que fosse, estava indubitavelmente muito mais enferma do que ele, sem falar do Dr. Blumenkohl. Seria faltar a todo senso de hierarquia e de distância não observar, no caso de Hans Castorp, uma reserva modesta, tendo-se ainda em conta que tal mentalidade estava de acordo com os usos da casa. Os levemente doentes não contavam, como Hans Castorp deduzia de muitas conversas que ouvira. Falava-se deles com desdém, segundo a escala de valores ali usada; eram olhados de revés, não só por parte dos doentes graves, mas também por aqueles que eram igualmente “leves”. Agindo assim, esses menosprezavam-se na verdade a si próprios, mas ao mesmo tempo salvaguardavam a sua dignidade, por se submeterem à referida escala de valores. Era humano. “Ora este sujeito!”, pareciam dizer uns aos outros. “No fundo, não sofre de nada. Mal tem o direito de estar aqui. Nem sequer tem cavernas...” Tal era o espírito que reinava no sanatório; era aristocrático à sua maneira e Hans Castorp inclinava-se diante dele, por um inato respeito à lei e à ordem, fosse qual fosse a sua natureza.»

Thomas Mann, A Montanha Mágica

pintores das pinturas dos outros

13:03

O que pinta quem pinta pela pintura do outro?


O homem que queria levar a sua versão de Filipe IV como caçador do Museu do Prado, por não se contentar com o facto de só Diego Velázquez ter tido (1633) direito a tentar o seu retrato. (Foto de Porfírio Silva, Dezembro de 2009)

a quadratura do universo




Edgardo Antonio Vigo, La cuadratura del universo, 1990 (impressão sobre papel)


28.12.09

coisas que devem ser lidas



Castro Caldas no Ladrões de Bicicletas:
Há uma espécie de “liberalismo”, ensinado sobretudo nos cursos de Economia, que é ofensivo para o liberalismo. Há quem pense, por exemplo, que um contrato aceite por ambas as partes é necessariamente um contrato legítimo e que isso é uma ideia muito liberal.
Comecemos por um caso extremo: como sabemos existe um mercado de orgãos humanos; muitas vezes estes orgãos são vendidos por pessoas em estado de necessidade; estes contratos são ilegítimos (e proibidos pela lei).
Passemos a um caso menos extremo: o contrato de trabalho obriga-me...

Continuar a ler: O liberalismo precisa de se defender do “liberalismo”.

uma decisão à altura de Cavaco

18:46

Cavaco promulgou diploma do Parlamento que adia entrada em vigor do Código Contributivo.

Decisão de Cavaco adia combate à fraude. PS: Presidente da República "caucionou" objectivos da oposição.


O PR é livre de manifestar, por actos próprios da sua função, por que linhas se cose. Acaba de o mostrar mais uma vez, abençoando a coligação negativa contra o governo pelo qual, supostamente, é constitucionalmente co-responsável. Mas, como não podia deixar de ser para honrar o estilo de Cavaco Silva, fá-lo com grande hipocrisia política. E mesmo cobardia. Justificar a promulgação com a afirmação de que o governo sempre pode retomar a iniciativa é chover no molhado. («A promulgação do presente diploma não impede o Governo de relançar, logo que considere oportuno, a discussão em torno do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, introduzindo os aperfeiçoamentos que considere adequados e abrindo um espaço de discussão aprofundada com os parceiros sociais e com os partidos políticos representados na Assembleia da República»). Claro que nada impede o governo de tentar outra vez. Mas a vida não anda com o mero tentar sempre outra vez. Se o PR queria um governo que assumisse funções só para desfazer o que se fez na legislatura anterior, deveria ter assumido a responsabilidade desse programa e devia ter procurado outra solução governativa. Mas Cavaco não era homem para assumir à luz do dia essa agenda.
Muito menos é grande método para avançar o método dos ziguezagues - quando o tempo perdido é precisamente obra de quem dá conselhos para recuperar o atraso. («Na nota justificativa referente à promulgação do diploma do Parlamento que adia a entrada em vigor do Código Contributivo, o Presidente da República defendeu que esta decisão continua a permitir ao Governo introduzir "aperfeiçoamentos" e medidas de compensação financeira em sede de Orçamento.»)
Cavaco elevou à altura da suprema magistratura da nação o mais puro exercício da hipocrisia política e da cobardia. Sempre valia mais assumir a sua agenda de primeiro desestabilizador, mas para isso teria de mudar de natureza. Certamente, este teatro continuará até se apresentar às próximas presidenciais como "presidente de todos os portugueses". Só se for por achar que "os outros" já não merecem ser portugueses...

27.12.09

verdade

23:03

«Verdade é que parecia um pouco estranho a Hans Castorp assistir, assim subitamente, a uma prelecção sobre o amor, já que nunca tinha ouvido conferências senão acerca de assuntos como o mecanismo de transmissão a bordo dos navios.»

Thomas Mann, A Montanha Mágica


23.12.09

a blogosfera é um lugar estranho


Vítor dos Reis, Acaso I: Três Visões da Constelação de Ruisdael, 2002


Posso afirmá-lo. Fiz uma experiência com as minhas intuições. Passo a relatar.
Há na blogosfera uma coisa a que chamam “correntes”, por parecer aquela outra coisa feita de variantes do “se não enviares esta mensagem a dez pessoas, vais partir a unha do indicador direito”. Na blogosfera, como não podia deixar de ser, a coisa é mais subtil: “indica as dez pinturas que mais te fazem doer a cabeça e passa este desafio a dez outros blogues” – sendo que a penalização implícita para o incumprimento varia entre o “nunca mais linko o teu blogue” e o “se calhar nem conheces dez blogues a quem passar o desafio” .
Uma dessas correntes pede que se indiquem “10 livros que não mudaram a minha vida”. Livros que, embora lidos, não deixaram mancha nenhuma na alma, nem em qualquer outra parte do corpo. (Ai! a alma não faz parte do corpo?! Pronto, desculpem.) Ora, eu decidi fazer uma experiência com a natureza da blogosfera, ampliando um incidente que já tinha algum tempo. Desafiado para aquela corrente, já há uns dois anos, respondi com uma lista de livros imaginários, mas concebidos segundo um certo programa. Não houve nenhuma reacção a essa minha resposta, o que confirmou a minha convicção de que essas correntes servem, na maior parte dos casos, apenas para aquecer a rede. Mas admiti que fosse uma interpretação abusiva da minha parte : a minha resposta “torta” não tinha sido “denunciada” por “respeito” ao que podia ser considerado um desvio da corrente.
Recentemente decidi testar a hipótese de que, realmente, as pessoas não lêem grande parte daquilo que fazem de conta ler na blogosfera. Isso, aliás, ajudaria a explicar como há pessoas que, tendo empregos e trabalhos que todos conhecem, passam por ler regularmente dezenas de blogues. A explicação seria essa: não lêem, passam os olhos. E adiante.
Para testar a hipótese coloquei em andamento uma versão daquela corrente, desta vez chamada “10 livros que não mudaram a minha vida (sabe-se lá por quê)”, arranquei o exercício com a minha lista programática de livros imaginários, e acrescentei que essa lista era “em si mesma”, “o mote para o que está em causa neste desafio”, acrescentando que, sem essa lista de partida, o desafio não chegava “bem a ser explicado”. Ainda me referia à coisa como um pedido de “leituras enviesadas” a dez blogues.
Resultado da experiência. Quase ninguém respondeu, mas isso é normal: a maior parte das vezes convido blogues que não dão cavaco a estas coisas, tal como quando escolho blogues minoritários para a minha “reserva pessoal” eles acabam rapidamente por passar dias ou semanas sem escrever uma linha. Mas isso vem dos meus gostos, não me penaliza. Tirando isso, houve quem (dando ou não uma lista de resposta) desse sinal de ter compreendido a coisa, quanto mais não fosse com um “smile” de cumplicidade para “as referências”. Outros, simpaticamente, responderam como se esta fosse mais uma versão da velha corrente: dizendo-o explicitamente ou mostrando-o por “actos e omissões”. Outros até comentaram no género "essa é velha".
Conclusão: não pensem que na blogosfera se lê aquilo para que se olha. A blogosfera é, nessa medida, um espelho do país. Mas isso não me surpreende. Tudo ao cimo da Terra é espelho de tudo ao cimo da Terra. Para não o ser, é preciso fazer um esforço. Mas isso está fora de moda. E talvez até fora de quadra.

um poema do poeta valter hugo mãe


O Herberto Helder tem duas

pernas e dois braços, dois olhos,

tem nariz e boca e come, vive

numa casa, espreita pelas janelas,

por vezes sai à rua, sozinho ou

acompanhado, a falar, apanha

chuva, liga a televisão, sabe onde

fica a França, lembra-se quando

era pequenino, inclusive

teve mãe e pai. É

impressionante o quanto um poeta

se pode assemelhar

às pessoas! A última vez que

falei com ele mandou-me um abraço.





valter hugo mãe



22.12.09

para gente que gosta de gatos

eu quero dar-vos uma prenda de natal

20:21

mau tempo

09:25

Cavaco. Urgência máxima para as leis do PS que a oposição chumbou.


«A suspensão do Código Contributivo e do Regime de Pagamento Especial por Conta (PEC), aprovados nas últimas semanas pela oposição, entrou ontem em Belém com um pedido de urgência e já estão sob a análise da Presidência, sabe o i. As duas reformas estavam em vigor desde a maioria absoluta do PS mas foram chumbadas, já depois das eleições, pela oposição - que exigiu a suspensão imediata das medidas. Agora a rapidez exigida tem um motivo: o Código Contributivo entraria em vigor a 1 de Janeiro de 2010 e até a sua suspensão ser aprovada por Belém impera a actual lei - o que seria uma situação juridicamente complicada de resolver. Esta suspensão tem ainda um impacto financeiro: os dois diplomas - e a redução do pagamento por conta às empresas - retiram ao Estado cerca de 720 milhões em receitas, um número a que a Presidência poderá ser sensível no actual quadro das finanças públicas.»

Tal como aqui escrevemos a 11 de Novembro passado, «Cavaco Silva, um PR que no que vai de mandato não se tem coibido de vetar diplomas do Parlamento, tomará que atitude quando lhe chegarem às mãos os resultados deste governo de soviete? Se o Presidente se tornar cúmplice desta forma de "governo da Assembleia", isso não será por força do destino. Será por opção política. Cá estaremos para avaliar essas opções.»

Cá estamos, pois. Ou terá Sua Excelência outras coisas a prender a sua atenção?

21.12.09

natal / cientistas / imagens




Não sei se conseguem ler a legenda do cartão de Boas Festas, mas é assim: «Imagem: Embrião de galinha de 1 dia com células fluorescentes marcadas com proteína fluorescente verde (GFP».

mono, estéreo, poli

10:12

João Soares culpa Cavaco por “crispação disparatada” entre Belém e São Bento.

Quando, da área do PS, só se ouve a "voz oficial bem comportada" da direcção, da linha absolutamente diplomática e cordata haja o que houver, dizem que o PS é monolítico. Provavelmente, nessas fases, com razão. É, então, de saudar que o PS mostre toda a sua diversidade, incluindo pela voz dos que nunca hesitaram em dizer o que toda a gente pensa sem ter coragem para o assumir. João Soares é um dos que, de há uns anos a esta parte, se desempenha desse aspecto da "alma" do PS. E tanto que o PS precisa de gente que não fale apenas pela alma do governo! (Sem descurar a responsabilidade de ser governo, claro.)

propaganda

20.12.09

Hanna e Martin, no Teatro Aberto



Ontem fomos ao Teatro Aberto à estreia de Hannah e Martin, de Kate Fodor. O Hanna é de Hanna Arendt, o Martin é de Martin Heidegger.
Para alguns, Heidegger foi um grande filósofo, para outros um palavroso enfatuado. Em qualquer uma dessas categorias, foi um dos grandes do século XX. Enquanto Heidegger pactuou com o nazismo, sendo um admirador de Hitler, e agiu, enquanto reitor da Universidade de Freiburg, como um agente do regime, qualquer que fosse o grau de convicção com que agiu, Arendt, também ela uma pensadora destacada do mesmo século, era judia, assumiu (e sofreu) essa condição e reflectiu (nomeadamente) sobre o que aconteceu aos judeus por causa da Alemanha. E por causa de homens como Heidegger. A forma como Arendt compreendeu "a banalidade do mal", o facto de que não é preciso fazer grandes planos de maldade para fazer muito mal aos outros, bastando deixar-se andar e "fazer o seu trabalhinho sem importância", deveria tornar-lhe mais difícil aceitar as explicações de Heidegger. E por que haveria isso de ser importante?
É que Arendt foi discípula do professor Heidegger, a quem admirava e por quem tinha sido formada como pensadora. Arendt admirava a profundidade da filosofia heideggeriana. E Hanna e Martin foram amantes durante um tempo. E isso complicava ainda mais a possibilidade de encontrarem uma resposta deles para um magno problema teórico e humano: a filosofia de Heidegger tinha alguma coisa essencial a ver com o nazismo de Heidegger? Que o grande pensamento está sempre possivelmente à beira do abismo, já sabemos. Mas, naquele caso, que importância teve o abismo na própria formação do pensamento?
Não é fácil colocar estas questões em teatro. Kate Fodor não esteve mal nessa tarefa, se queria uma peça que pudesse ser vista por mais do que iniciados ao pensamento de Heidegger e de Arendt. O texto escolhe as figuras dramáticas essenciais para a colocação do problema: Martin Heidegger, a sua mulher (nazi dedicada ao partido e à carreira do marido), Hanna Arendt, o filósofo Karl Jaspers (que era amigo e admirador de Heidegger mas não lhe perdoou o nazismo). O essencial do teatro de ideias estás nestas personagens.
O actor Rui Mendes faz Martin, Ana Padrão faz Hanna. Rui Mendes está desigual nas duas partes do espectáculo. Na segunda parte, depois da guerra, tratado como nazi, Heidegger está a fazer as contas com o mundo do erro da sua participação política, a tentar mostrar que acreditou na pureza inicial do nazismo e de Hitler mas foi usado (e abusado) pelo andamento dos acontecimentos e que a sua "solução" não era a "solução final". Aí, Rui Mendes consegue mostrar um homem envelhecido, acossado, mas a dar luta, a resistir violentamente ao julgamento do seu nazismo, a mostrar que a sua culpa não é a do cúmplice. Já na primeira parte, onde a violência que era preciso fazer passar era outra, era a violência do pensamento de Heidegger, a atracção fatal de uma filosofia radical por ir à raiz, o apelo de um pensar que colocou a inteligente Arendt na dependência do professor - a essa violência do pensamento Rui Mendes não foi capaz de dar expressão. Faltaram-lhe olhos para isso. Não se via nos olhos do actor o fogo da personagem, apesar de essa culpa ser partilhada com o texto, que tão pouco é capaz de agarrar esse Heidegger.

Já Ana Padrão, como Hanna Arendt, está muito bem quase todo o tempo (apesar dos vários deslizes graves desta estreia), conseguindo representar bem a dupla face da sua personagem: a atracção da mulher inteligente, a inteligência da mulher atraente. Hanna perde a inocência com Martin, provavelmente em mais do que um sentido, e faz disso a força da sua personagem, na qual há um constante deslocar de carga entre bombordo e estibordo, balançada pelo movimento do barco no meio da tempestade. Mas o que guia sempre essa mulher é a força do seu pensamento, mesmo quando hesita, mesmo quando acusa Heidegger, mesmo quando o defende. E Ana Padrão permite-nos ver isso e tem, por isso, uma grande interpretação. O único erro da interpretação de Ana é que Hanna nunca envelhece naqueles anos todos, o que certamente teria tido a sua importância, até na relação com Heidegger: a rapariga fascinada tinha cedido o lugar à pensadora afiada - e isso haveria de ter consequências, para a relação entre ambos e para a independência de espírito com que Hanna fez coisas que sabia muitos não lhe perdoariam (como defender que o ex-nazi Heidegger deveria poder voltar a ensinar na Alemanha depois da guerra).
Irene Cruz, como mulher de Martin, e Luís Alberto, como Karl Jaspers, têm papéis menos pesados, mas muito importantes para este teatro de ideias com pessoas dentro - e desempenham-nos muito bem.
Uma noite bem passada, um espectáculo que valeu a pena. E que recomendamos. Para quem não esteja minimamente familiarizado com o tema, convém ir um bocadinho mais cedo e ler o programa, com materiais muito úteis.


19.12.09

Ágora, o filme; Hipácia de Alexandria, a filósofa

00:24


Ágora, o filme, é oportuno. E deve merecer-nos aqui algumas palavras.
O filme centra-se largamente na figura de Hipácia, uma filósofa da Alexandria (século IV - século V da era cristã), uma figura importante no panorama intelectual do seu tempo. Contudo, no aspecto biográfico, esqueçam: não se sabe praticamente nada sobre a sua vida e obra. Todas aquelas peripécias pessoais, tanto as amorosas (como o episódio do sangue menstrual para mostrar a um aluno apaixonado a baixeza do corpo) como as científico-filosóficas (como a antecipação da hipótese kepleriana, heliocêntrica com elipses em vez de círculo) são possibilidades, são um esforço dramático para fazer de uma pessoa um símbolo de um círculo cultural e social que devia ter também algum peso político. Nem sequer se sabe se na altura daqueles acontecimentos dramáticos Hipácia seria ainda bastante jovem e bela (amada e odiada tanto pela sua inteligência como pelo seu encanto e beleza) ou já uma mulher madura (nesse caso admirada e odiada pelo seu brilho e poder).
(À esquerda: Hipácia de Alexandria, de Charles William Mitchell)

Parece, contudo, ser altamente credível que Hipácia seria uma figura de topo de um círculo científico-filosófico com uma actividade importante (designadamente, em matemática e astronomia), a escola de Alexandria, independente e diferente da escola de Atenas, mas não sendo sequer certo que forma teria essa "escola" (por exemplo, se teria um reconhecimento e um apoio formal da administração imperial). A sua orientação filosófica seria neoplatónica, uma herdeira da grande cultura antiga, religiosa e culturalmente pagã, provavelmente convivendo com práticas mais ou menos mágicas (o que faz com que os cristãos tivessem, tecnicamente, alguma razão em a acusar de "bruxaria").


(À direita: Hipácia de Alexandria, de Onorio Marinari)
O que é certo, e isso o filme mostra bem, é que aquele foi um momento em que os cristãos agiram como bárbaros: porque agiram pelo braço brutal da populaça e com desprezo pela cultura (designadamente, os livros da segunda biblioteca da cidade); porque em termos religiosos estavam numa fase de exclusivismo (não queriam liberdade de culto, queriam que o seu culto fosse o único admitido); porque estavam a minar o Estado, tomando de assalto o poder pelo desvio da religião, sobrepondo a filiação religiosa à estrutura política da comunidade (fazendo um uso terrorista das "conversões" dos dignitários imperiais). Tudo isso é histórico e é oportuno lembrar, neste tempo em que muitos cristãos ocidentais acusam outras religiões dessas práticas. (Acusam com razão, não podem é falsear a história e esquecer que também os seus antecessores fizeram essas experiências.)

Do ponto de vista icónico, o filme faz (embora com rigor histórico, penso eu) uma identificação subtil entre a imagem dos cristãos militantes que "policiavam" a ofensiva (fazendo de tropa de choque do movimento) e a imagem que o ocidente tem hoje dos radicais islâmicos (o tipo físico e as roupas, nomeadamente, são comparáveis, o que não é de estranhar atendendo aos grupos étnicos que ocupam as paragens geográficas em causa).

O filme é político, de forma mais estrita, ao fazer reflectir sobre o uso da religião para efeitos políticos. Quem, como eu, já teve a experiência de, numa aldeia do norte deste país, estar cercado numa escola, onde tinha ido para assistir a uma sessão de esclarecimento de um partido político de esquerda, partido esse que nem sequer era o meu, tendo de ser daí "resgatado", sente aquela fúria "religiosa" da populaça de uma maneira muito especial.
O filme, como filme, não é brilhante. Mas vale a pena. É um filme útil para fazer pensar. O que, hoje em dia, faz muita falta.

Leitura recomendada: Clelia Martínez Maza, Hipatia, Madrid, La Esfera de los Libros, 2009

18.12.09

O design, o concreto, o abstracto



Oswaldo Goeldi, Chuva, 1957 (xilogravura)

A propósito da questão do design, tal como colocada em posta anterior, tive oportunidade de escrever em privado: "Para mim essa questão [do abstracto vs. concreto] é uma questão central na responsabilidade que temos em relação aos outros: os outros na sua concretude e não "os outros" como representação de um qualquer "todo" (sociedade, Deus, utopia, ...)."

Para tentar explicitar, socorro-me de Thomas De Koninck, de quem, na introdução a A Nova Ignorância e o problema da cultura (Edições 70), respigo algumas frases.

«O que é novo [na ignorância] é o espírito de abstracção (...). [D]evemos [nessa matéria] acusar a falha central da cultura moderna: o erro de tomar o abstracto pelo concreto, a que Whitehead chamava, com razão, "o sofisma do concreto mal colocado" (...). Concreto (de concrescere, "crescer conjuntamente") significa "o que se formou juntamente". Nesse sentido, uma árvore, ou qualquer outro ser vivo, é propriamente concreta, ao passo que um relógio ou qualquer outro artefacto o não é, já que as suas partes foram juntas por um agente externo e são indiferentes umas às outras (...). [T]odas as disciplinas têm a revelar algum aspecto indispensável do ser humano, mas cada uma delas, ao fazê-lo, só apresenta uma parte ínfima dele. Entretanto, acreditar-se-á que ao somar todos estes aspectos, todas estas partes, se pode obter um todo que, por fim, seja o próprio ser humano? Isso significaria não ter percebido nada e, além disso, seria uma magnífica ilustração da nova ignorância . (...) As antropologias científica, filosófica e teológica "manifestam uma total indiferença recíproca" [Scheler]. (...) Falta a unidade, que só pode ser dada pelo concreto. (...) O espírito de abstracção, porém, continua a reinar tanto na ordem prática como no plano teórico. Esquecendo, ou ocultando deliberadamente, as omissões metódicas que ele torna possíveis, comete devastações no agir individual e colectivo.»


17.12.09

as contas e o tribunal


Dentro das minhas limitações, acho que a Sofia sabe sempre do que fala (http://aregradojogo.blogs.sapo.pt/184969.html). Mas há outros aspectos da questão que me preocupam:
O Estado pode poupar mais de 800 milhões de euros nos próximos cinco anos recorrendo a uma central de compras para o Serviço Nacional de Saúde, defende o economista Augusto Mateus, em entrevista à agência Lusa. A criação desta estrutura foi chumbada pelo Tribunal de Contas.
E acrescenta Augusto Mateus, referindo-se a uma das críticas do Tribunal de Contas, que a perda de autonomia de gestão das unidades de saúde não é preocupante, porque ela é apenas um instrumento. “A autonomia de gestão faz-se para ganhar eficiência”, diz, exemplificando com a perda do poder de decisão na política monetária e cambial, com a entrada em vigor da moeda única. “Portugal também perdeu autonomia quando foi introduzido o euro e ganhou eficiência na política monetária”.

Estará o Tribunal de Contas a pesar todos os aspectos da questão? Ou está "apenas" a fazer respeitar a lei? Não sei, é uma pergunta.


ler (sabendo)

17:18






De José Ames, no Persona:

Agora que a vaga de protestos contra o modelo de avaliação dos professores se parece ter desfeito e, com o novo ministério, os sindicatos alcançaram tudo o que pretendiam, conseguindo, recentemente, que a progressão na carreira fosse completamente desligada do mérito, todos podemos ver que o que estava desde o início em questão não era o modelo, mas a própria avaliação.

Sugiro a leitura integral (que não, necessariamente, a concordância integral): O Cúmulo.

valentão

17:07

um americano a inspirar-se em Portugal

eu conheço um país...

12:01

ideias socialistas / há debates possíveis




Há um coro de cidadãos a clamar pela evidência da impossibilidade. Da impossibilidade de um acordo político entre o PS e os que se julgam a esquerda da esquerda. Um acordo que abrisse um campo de governação responsável em toda a latitude desse termo. Certo, há um elevado grau de dificuldade nesse caminho, ninguém duvida. Que a prova do pudim só pode ser feita por uma via - tentando - é o meu ponto. Para isso reclamar-se-ia, em vez da retórica do concurso "a ver quem é mais vermelho", um outro concurso mais produtivo: ideias socialistas que não sejam a reedição de velhos fracassos, quem tem?

Pedro Bingre escreveu no Opinião Socialista (e eu fui pescar ao Ladrões de Bicicletas):

«Contraste-se este nosso regime comercial com o dos Países Baixos; o mercado imobiliário holandês é dos que mais exemplarmente executa a retenção pública de mais-valias urbanísticas. Mesmo que se encontrem contíguos aos perímetros urbanos, os solos agrícolas holandeses são transaccionados a preço estritamente agrícola, posto que qualquer comprador privado sabe de antemão que futuros acréscimos de valor do solo, produzidos por via de loteamentos, reverterão para o erário público. Além de reter as mais-valias urbanísticas, o Estado Holandês oferece também para arrendamento público mais de 30% do parque habitacional do país — fórmula que além de facilitar a mobilidade laboral e assegurar residência a preço justo para toda a população, dificulta sobremaneira o crescimento de bolhas imobiliárias.»

É destas coisas que falo quando falo da coligação negativa e do seu espelho.

[Produto A Regra do Jogo]

um sismo? um cisma? ou cismar?

16.12.09

a coligação negativa e o seu espelho



Detesto a coligação negativa. Custa-me compreender que o PCP e o BE, que tanta dificuldade têm em se entender entre si quando se trata de construir algo pela positiva, se entendam tão facilmente com o PSD e o CDS em iniciativas que apenas visam humilhar o PS e o governo (ou “ajustar contas” com a anterior legislatura). Penso até que o comportamento da esquerda da esquerda parlamentar a tem mostrado tão fracamente preparada para governar como os despojos de MFL e JPP.

Contudo, o reverso da medalha da coligação negativa é o PS achar que todas as demais forças parlamentares estão em pé de igualdade no que toca a viabilizar as políticas do seu governo. A ideia que se transmite ao país é que ao PS tanto faz acompanhar com o PCP como com o CDS no que toca a encontrar soluções para os problemas. Mas isso, se tem aritmeticamente algum sentido, representa o grau zero da ideologia. E o grau zero da capacidade de liderar o debate político da governação nas condições concretas de um parlamento complexo. O PS, fazendo-se de agnóstico face a quaisquer entendimentos, dá uma justificação à coligação negativa: porque a coligação negativa rege-se pelo princípio do “todos contra um”, e o PS (deste modo) pelo princípio do “um contra todos”. (E Paulo Portas é o único que mostra perceber isso. Quando vem desafiar o Governo a negociar o orçamento antes de o apresentar, faz aquilo que uma oposição responsável tem de fazer: mostra disponibilidade para negociar. E apresentará mais tarde a factura se essa disponibilidade não for testada.)

O PS tem de escolher para que lado quer que o vento sopre. O PS tem de desafiar, ou os partidos à sua esquerda, ou o PSD, para uma base política sólida e coerente para a governação. Se quiser desafiar o PSD, está a tempo de determinar o essencial do debate que os social-democratas terão de travar proximamente. Se quiser desafiar as outras esquerdas, terá oportunidade de voltar a mostrar o que entende por esquerda moderna. O PS tem de propor um rumo político ao país que responda à realidade da sua força parlamentar: não pode é continuar a ser o espelho da coligação negativa. Até porque, finalmente, o eleitorado fará dele o principal culpado se o actual jogo do empurra conduzir a uma crise que o país não pode desejar neste momento.

[Produto A Regra do Jogo]

14.12.09

o crime e o enriquecimento ilícito

14:50

Prosa de Pedro Soares de Albergaria, no Sine Die:
Apenas cito um conhecido liberal alemão que já em 1792 se dava conta de preocupações que parecem arredadas de uns quantos representantes da Nação. Questionava-se W. Von Humboldt (o filósofo, irmão do naturalista) sobre “até que ponto está obrigado o Estado, ou lhe é permitido, prevenir o delito antes que seja cometido.” E não obstante reconhecer que “dificilmente se encontrará outra tarefa que esteja eivada de propósitos tão humanitários”, concluía que a mesma “parece entranhar perigos para a liberdade”. Pois é, isso foi há dois séculos. E não consta que nessa altura a vida publica fosse um exemplo de ética e virtude.

Para ir além do aperitivo, ler Uma proposta Orwelliana.

os advogados e a justiça humana

11:46

Eu, quando contrato um advogado, contrato-o para ele defender a minha causa: para explorar todas as virtualidades e todos os recantos das minhas razões e para contrariar todas as razões que podem danificar a minha. Por ser assim a justiça humana: não é um deus omnisciente que decide, mas um homem ou uma mulher (juiz ou juiza) que pesa os argumentos que lhe dão e é com essa luz que ilumina a sua decisão. Se o meu advogado se interessar mais por fazer brilhar as razões da outra parte, ou se dedicar ao exercício intelectual de me fazer aderir ao que ele ditaria se estivesse na posição de juiz imparcial, eu despeço esse advogado. E se calhar ainda tenho direito a ir fazer queixa dele. É assim a justiça humana civilizada: o sistema conta com as partes a apresentarem a melhor versão possível dos respectivos pontos de vista. E dessa compita se fazem as faúlhas do fogo da decisão possível.
Mas há quem ache que o advogado de uma instituição pública deve ser imparcial. Como o jornalista do Público que escreve a notícia IEFP afasta jurista por actuar de forma isenta e imparcial. Há quem faça joguinhos de palavras para pretender que o advogado de uma instituição deve ser outra qualquer coisa, talvez uma espécie de provedor das causas contrárias. A direcção e administração do jornal Público seguem a linha deste seu jornalista na relação com os seus advogados? Ou isto é pura demagogia barata, ao nível de jornal gratuito de má catadura? Ou este jornalista do Público vai proximamente criticar os seus patrões por não mandarem os seus advogados assumir posições de "imparcialidade" nas causa em que têm intervenção?

11.12.09

a continuação por outros meios

14:39
Vamos supor que as palavras dos líderes da católica apostólica romana igreja, a começar pelo bispo de Roma, são ouvidas pelos que se consideram parte dessa igreja, ou seus seguidores. Vamos supor que isso implica que essas palavras influenciam o comportamento desses seguidores. Vamos supor que, por isso (por causa da orientação oficial da romana instituição), há um número significativo de pessoas que abominam o uso de preservativo e que um subconjunto dessas passa por situações em que, não usando preservativo, contraem doenças que de outro modo podiam ser evitadas. Não estou a dar nada disto por certo, estou apenas a conjecturar um nexo entre o facto de certas pessoas darem voz a certas posições e o facto de esses ouvintes atentos e conformes adoptarem certos comportamentos com certas consequências. Seria razoável determinar um grau de responsabilidade pela contracção de tais doenças, responsabilidade associada à expressão de ideias que influenciam o comportamento dos outros. No caso concreto, muitos fazem essa acusação aos hierarcas da católica igreja. Uma forma simples, mas correcta, de dizer isto é: certas ideias matam.
O meu ponto aqui é a extensão desse fenómeno: que a expressão de certas ideias seja responsável por certos comportamentos em sociedade e pelos custos que eles acarretam para essa mesma sociedade, tanto os custos inscritos nas contas dos autores como os inscritos nas contas dos que indirectamente pagam as favas.
O nosso país continua a pagar as favas da indigência que uma densa cortina de expressão e ampliação de opiniões lança sobre o país, sem que seja possível criar a consciência de como essas opiniões matam. O país tem reais problemas: pessoas e organizações pouco qualificadas, desigualdades injustificadas por não corresponderem ao diferencial de contributo que cada um dá à comunidade, um Estado que continua a não constituir um garante de aspectos essenciais do “bem comum” básico que não podem depender do sucesso económico das pessoas ou do interesse mercantil das actividades. Continuamos a ser pobres, como país. Mas as ideias que ocupam o “espaço público” são completamente orientadas para evitar que se façam os verdadeiros debates – e são usadas para “fazer política por outros meios”. Já não é a guerra que é a continuação da política por outros meios, nem a política a continuação da guerra por outros meios. A dissolução do debate político – como devemos viver juntos – pelos inspectores de costumes, que roubam à justiça o apuramento da “verdade” e se mascaram de moralizadores a quem cabe acender as fogueiras e escolher as vítimas, isso é que é mesmo a continuação da política e da guerra por outros meios. Só que os meios são o vale tudo. E o preço é a incapacidade para que a comunidade política – o conjunto dos cidadãos, com as instituições de que se dotaram – pense a sua situação e decida o seu futuro. O objectivo é claro: criar uma situação em que os portugueses tenham tanta capacidade para decidir como teriam se estivessem a afundar-se no mar profundo ou a arder num labirinto em chamas.
Já faltou mais.
Entretanto, vamos discutindo coisas interessantes. Como saber se é Soares ou Alegre que tem, ou teve, mais o pé dentro ou fora do PS. Outros, mais ladinos, tratam da mercearia.

10 livros que não mudaram a minha vida (sabe-se lá por quê)

12:58


O Natal, e a sua indústria das prendas, tem o condão de me irritar. Ainda por cima, sendo coisa a  que (quase) não se consegue fugir sem dar inúmeras explicações. Apetecia-me ter uma veia surrealista para fintar a correria. Mas isso não tem quem quer.
Como modesta alternativa, vamos propor um exercício de deambulação pelo labirinto. O que propomos a dez outras casas da blogosfera é que indiquem publicamente "10 livros que não mudaram a minha vida (sabe-se lá por quê)" e desafiem outros blogues (dez outros? não necessariamente) a fazer o mesmo.
Deixo, seguidamente, a minha lista de "10 livros que não mudaram a minha vida (sabe-se lá por quê)", que, em si mesma, é o mote para o que está em causa neste desafio - sem o mesmo chegar bem a ser explicado. Listo, depois, os dez desafiados para nos contarem das suas leituras enviesadas.

1 – René Descartes, O erro de Damásio, Haia, Editora do Museu

2 – Ivan Denisovitch, Um dia na vida Alexander Soljenitsin, Varsóvia, Editora Reverso

3 – Karl Marx, Pour Althusser, Carnaxide, Edições Novo Progresso

4 – Foucault, O pêndulo de Eco, Torino, Editora Técnica

5 – Sigmund Freud, La mégalomanie de Israel Rosenfield, Paris, La librairie do XXème siècle

6 – Sísifo, O mito de Camus, Argel, Editora Existência

7 – Símon Bolívar, Garcia Marquez en su laberinto, Caracas, Editora Mondadori

8 – Fausto, Goethe, Bona, Editora do Ministério da Ciência

9 – Ulisses, James Joyce, Tróia, Editora Exílio Obscuro

10 – Brodie, El informe de Borges, Buenos Aires, Editora MC


Esta mensagem vai para:











atenção aos barcos que volteiam


Como escreve o Eduardo Pitta:

No âmbito do Caso CTT, o Ministério Público acusou 16 pessoas de gestão danosa, branqueamento, participação económica em negócio e outros crimes. Em português: acusou-os de corrupção. Em causa, a venda de dois edifícios, um em Lisboa, outro em Coimbra. Prejuízo: 13,5 milhões de euros.

Um desses 16 arguidos chama-se Carlos Horta e Costa. Foi secretário-geral do PSD durante a presidência de Marcelo Rebelo de Sousa. Foi nomeado presidente dos CTT em 2002, por decisão de Durão Barroso. Mas como, ao contrário de Armando Vara, Carlos Horta e Costa não nasceu em Vilar de Ossos, nem foi caixa de banco, nem almoça (I Presume!) com sucateiros, os media tratam-no como deviam tratar toda a gente: com respeito. Nada contra.

Ler, na íntegra, Gente fina é outra coisa.

manifesto anti-cuspo


O Rui Herbon dá-nos a ler:

parar um pouco para lerem um aviso de Virgílio Ferreira (Escrever, página 215), que aqui com gosto e a custo zero lhes ofereço: «Não digas. Não digas mal do país, ou seja, de ti. Terás talvez a ideia de que o dizeres mal te separa do resto e te alça a ti a uma posição altaneira. Não penses. Fazes parte daquilo em que cospes, és pertença dessa sujidade. A grandeza de uma ofensa tem que ver com ela própria. A grandeza do cuspo é o escarrador que és tu. Aprende o orgulho de ti na grandeza ou na miséria. E se queres condenar a miséria que também é tua, fala um pouco grosso que não te fica mal. Podes talvez lamentar mas não escarnecer. Se cospes tornas visível o cuspo naquilo em que cuspiste. Como queres que os outros te respeitem se tu mesmo não o fizeres? Para o lixo há recipientes apropriados em que esse lixo não se vê. Não cuspas mais no país para que os outros não se enojem do cuspo em que revelas a terra que é tua e que, portanto, és tu».

E a que vem tudo isto? Tudo explicadinho no A escada de Penrose.

corrupção (e sucedâneos)



Nem tudo o que parece é. A demagogia é o que parece. Venha de onde vier. Táctica política é táctica política, é uma coisa que se pode discutir e os políticos têm de fazer isso. Mas tudo o que sirva para misturar água benta e cantares celestiais com um problema em que o que deve interessar são os resultados - é pura aldrabice. Ou pior.

N' A Forma Justa vale a pena ler Um comentário (mais um) sobre corrupção.

(É por estas e por outras que estou como o Fernando Pessoa, que o livrinho distribuído hoje com o i me lembra: Prefiro rosas, meu amor, à Pátria / E antes magnólias amo / Que a glória e a virtude.)

Man Controls Robotic Hand with Mind

10:13





10.12.09

«Os Lusíadas», versão 2.0



Jogo contra a Pobreza de Zidane e Ronaldo vai ser na Luz.


Ainda pensei que o título devesse ser, no mínimo, e para usar apenas as mesmas palavras, qualquer coisa como "Jogo de Zidane e Ronaldo contra a pobreza vai ser na Luz". Mas não, Zidane e Ronaldo, uns perdulários, esturraram a massa toda e agora vêem-se nestes apuros.
O Público, mesmo depois da saída do sr. Fernandes, continua a praticar a língua portuguesa nos limites da culinária.

normalidade absoluta

mais esquerdistas

14:36

o medo que eu tenho destes radicais



O Rui Herbon, no seu A escada de Penrose, fala do caminho que o Brasil tem feito nos últimos anos. Titula O país da alegria. E destaca o papel de Lula. Só falta acrescentar uma coisa: quando Lula se candidatou a Presidente, a vozearia dos que alertavam contra os perigos de tal radical - era grande. Como é sempre grande o ruído dos meios quando se aproxima alguém que possa mudar o ram-ram. É bom lembrar.


ninguém vive uma vida por outrém

14:20



Sam Jinks, Still Life, Pietá, 2007
(na Arte Lisboa 2009, foto de Porfírio Silva)


9.12.09

o que é português é mau?


Num texto sobre os erros de arbitragem do passado jogo entre Vitória de Setúbal e Sporting, encontrado no jornal i, escreve-se:

O problema é que no futebol português a lógica é diferente.

Claro, o problema é sempre português. Qualquer problema detectado ao cimo da Terra, qualquer erro, é sempre uma marca portuguesa indesmentível. Claro, esta é a terra mãe do disparate. Aliás, a ida da França ao Mundial da África do Sul, e a exclusão da Irlanda, nas condições que sabemos, foi uma aplicação do penso português fora de fronteiras. Ou não terá sido?

Quando é que jornais que queriam ser sérios se abstêm de escrever estas tolices? Será pedir demais?

antes era o tiro no pé...


... que era considerado um mau gesto. Agora o que desaconselham é o beijo no pé.





Josefa de Óbidos, O Menino Jesus Salvador do Mundo, 1673



Padre Feytor Pinto desaconselha beijo no pé do Menino Jesus.

«De facto [acrescenta o padre], todas as pessoas a beijarem o mesmo pé do Menino em termos de saúde é errado e é daí que é um conselho que damos.» Pois, é capaz de ter razão. Já quando acrescenta que «Fazer uma festa é a alternativa», é capaz de não ter tanta razão. Porque as mãos também são campo de transmissão. O melhor era mesmo deixar o Papa falar sobre o assunto, desde que no uso da faculdade da respectiva infalibilidade.
Agora a sério: é bom que os responsáveis das igrejas se preocupem com as consequências sanitárias das práticas religiosas, embora seja muita pena que nem todos - e nem sempre, e nem para todos os casos - façam isso.

8.12.09

bloco central, bloco total


Jimmie Durham (da série The Dangers of Petrification)


«Administração Pública: depois de um início "a matar", a mobilidade perdeu ritmo», titula o Público.

Entre nós, muitos bramam contra o "bloco central". Só que o "bloco central" vai do CDS ao PCP, passando pelo BE, pelo PSD... e às vezes pelo PS. É o "bloco total": ninguém arrisca outra equação de equilíbrios, com apostas mais qualificadas e mais exigentes para o futuro. E, se alguém arrisca, todos se plantam no meio da estrada para barrar o avanço. O verdadeiro bloco central é uma pedra no caminho. E uma pedra no sapato


(produto A Regra do Jogo)

3.12.09

ser um pouco tunhas

08:19
Mário Soares mostrou, há uns dias, preocupação com o estado do PSD, parece que dizendo que seria preciso ajudar esse partido a ultrapassar a crise que atravessa. Muita gente já expressou algum tipo de opinião acerca dos riscos que uma eventual implosão do PSD acarretaria para o sistema pluripartidário em Portugal. Até eu, pasme-se, escrevi há tempos neste blogue (um partido falhado?) sobre esse ponto.
Nada disto significa que tenhamos passado a ser simpatizantes do PSD, que tenhamos passado a concordar mais com ele,que tencionemos de futuro votar nesse partido. Não é esse, pelo menos, o meu caso. Significa, tão somente, que nos interessa o funcionamento de um sistema político onde as outras opiniões fazem parte do ecossistema das nossas próprias opiniões. Significa que não nos interessa nada ficar a falar sozinhos, que acreditamos na necessidade do pluralismo, que temos a noção de que o definhamento de um partido com uma presença tão forte no país não se resolverá depressa e bem num esquema partidário que (naturalmente) tem o seu grau de rigidez. E significa que temos a ideia de que isso poderia, caso não se resolvesse, ser um problema para a democracia.
Alguns, diferentemente, parecem pensar que a democracia consiste em cada um desejar que todos os partidos, excepto o seu próprio, ardam no fogo do inferno. Paulo Tunhas, que opinia regularmente no jornal i e subscreve as suas opiniões como filósofo, ou pelo menos como Professor de Departamento de Filosofia da Universidade do Porto, é talvez um dos elementos desse conjunto. Desenhei esta conjectura ao ler Tunhas a ligar um dos seus ataques pouco filosóficos ao PS com as palavras daquele Mário Soares preocupado com o PSD, misturando alhos com bugalhos e pondo em letra de jornal um pacote de banalidades. (Às vezes pergunto-me se é preciso ser um filósofo "à Tunhas" para escrever aquelas profundidades num jornal.) Ele não foi o único a querer ridicularizar Soares graças às suas preocupações com o PSD, mas, para mim, a palavra de um filósofo é sempre merecedora de mais atenção, que se há-de fazer a estas manias.
Fico agora à espera de novo artigo de Tunhas, desta feita agraciando Pinto Balsemão, que veio "alertar para o risco de suicídio do PSD". Tunhas permitirá a Balsemão estas liberdades ("Temos de sair deste lento suicídio"), com a desculpa de que ele, sendo militante, pode falar do PSD, embora os demais devam calar as suas preocupações? Ou Tunhas sentir-se-á escandalizado, mesmo assim, por haver quem diga publicamente que o actual momento do PSD é susceptível de causar perturbações à concentração dos debates nacionais nos verdadeiros problemas que nos afligem?

2.12.09

apocalipse

Servem para quê as palavras?
Para mover o mundo de tal modo que aquele sítio desejado nos entre pela nossa rua dentro, oferecendo-nos uma proximidade onde as pernas não seriam capazes de nos levar?
Para mexer naquelas partes dentro das pessoas que não vamos tocar, por respeito, mas cujo estado disposicional influi muito na possibilidade de chegar perto dessas mesmas pessoas sem ser mordido?
Para criar os deuses que surgem quando a vida se complica, e para matar pelo esquecimento os deuses que não cabem no nosso mundo quando voltamos a poder pensar sem medo e sem fome e sem frio?
Para imaginar que são inimigos os amigos, e amigos os inimigos - e para reconhecer como amigos os que o são?
Para jogar xadrez mentalmente, como o xadrez às cegas, em que os jogadores jogam "de cabeça" sem tabuleiro e sem peças físicas (o xadrez é uma actividade extremamente formalizável), mas numa variante em que todas as reflexões estratégicas para as jogadas seguintes têm de ser verbalizadas?
Para ler alto aos netos as Investigações Filosóficas de Wittgenstein e dizer-lhes que poucos romancistas alguma vez se deram ao trabalho de escrever um romance e, ainda na mesma vida, escrever outro a desdizer tudo o que dissera o primeiro - como Wittgenstein fez ao Tratado Lógico-Filosófico com as posteriores Investigações Filosóficas?
Para conversar com o pobre acerca da caridade, apenas para testar se a fome dele já é tão grave que o obrigue a aturar as nossas prelecções?
Para que servem as palavras? Para nos dar de comer ou para nos entreter quando a fome já não se aguenta?
Para que servem as palavras? Para os nossos queixumes, para usar os queixumes como manifestações indirecas e rebuscadas de ternura, como o pescador que não chega a lançar o isco à água mas canta, canta, canta para os peixes do mar, dispensando-os de ouvir sermões tão enrodilhados como os de António de Lisboa no dizer de Vieira?
E por qual razão não chega a ser viável dizer para que servem as palavras?


Óscar Salmerón, Los Cuatro Jinetes del Apocalipsis, 2009 (detalhes)
(na Arte Lisboa 2009)